Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
as circunstâncias são o real excesso <strong>de</strong> automóveis e a real falta <strong>de</strong> lugares <strong>de</strong> estacionamento.<br />
Acontece que as visões do mundo muitas vezes mudam quando nos expomos a circunstâncias<br />
diferentes, ou quando nos propomos experimentar algo <strong>de</strong> novo. Não <strong>é</strong> preciso ir ao Burkina<br />
Faso para ver que a mis<strong>é</strong>ria empurra as pessoas para andarem a p<strong>é</strong>. Basta ir ao Norte da Europa<br />
para vê-las usando transportes públicos, bicicletas, ou partilhando boleias. E basta experimentar<br />
apanhar <strong>um</strong> autocarro, o metro, <strong>um</strong> táxi, ou mesmo usar a bicicleta para se <strong>de</strong>scobrir que há<br />
outras vidas.<br />
Oh, eu sei, eu sei: e os que moram nos subúrbios porque para lá foram empurrados? E os erros<br />
políticos que levam ao estímulo do uso do carro? Razões válidas. Mas que dizer dos casos em<br />
que, por hipótese, as criaturas vivem na cida<strong>de</strong>, nem sequer muito longe do local <strong>de</strong> trabalho e<br />
ainda por cima com horários flexíveis (estes privilegiados são os meus colegas e eu próprio).<br />
São caso interessantes para pensar, porque, perante circunstâncias sociais ben<strong>é</strong>ficas,<br />
reproduzem, ainda assim, o próprio problema <strong>de</strong> que se queixam. Estamos, pois, perante <strong>um</strong> dos<br />
famosos “problemas <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>s”.<br />
<strong>Este</strong> problema po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrito <strong>de</strong> duas formas (e não, necessariamente, explicado): a<br />
escravidão em relação ao status, que <strong>é</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do nível económico; a resistência à<br />
mudança e à experiência. Não se trata, obviamente, <strong>de</strong> características inatas dos nossos<br />
compatriotas. Trata-se <strong>de</strong> resultados do treino a que somos sujeitos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância. Por isso<br />
mesmo há-<strong>de</strong> chegar o dia em que será moda (dará status…) apanhar os transportes públicos: no<br />
dia em que mais gente souber que <strong>é</strong> o que se faz “lá fora”, que <strong>é</strong> sinal <strong>de</strong> consciência ecológica<br />
(e, <strong>é</strong> claro, quando a oferta <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> jeeps não acompanhar a procura <strong>de</strong><br />
diferenciação…).<br />
É aqui que entra a parte vaidosa e egocêntrica da crónica. É que há cerca <strong>de</strong> dois anos que não<br />
levo o carro para o local <strong>de</strong> emprego. Mesmo assim, nas raras vezes que o levo, encontro<br />
sempre lugar – n<strong>um</strong> local que me “obriga” a caminhar cem metros, em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>z ou vinte. Mas<br />
a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta foi o prazer <strong>de</strong> apanhar táxis, porta a porta, e gastando provavelmente o<br />
mesmo que em gasolina. Ou o <strong>de</strong> apanhar <strong>um</strong> transporte público que me permite olhar a cida<strong>de</strong>,<br />
os meus concidadãos, ou <strong>de</strong>ixar os pensamentos vogarem.<br />
Posso dizer que “estive lá” (n<strong>um</strong> mundo sem carro próprio) e que “sobrevivi”. Mais: at<strong>é</strong> gostei.<br />
Por isso as conversas do “arranjaste lugar?” passaram a soar-me a conversas sobre a tacanhez<br />
h<strong>um</strong>ana. At<strong>é</strong> os que precisam <strong>de</strong>slocar-se 20 Km at<strong>é</strong> à cida<strong>de</strong> começam a não ter <strong>de</strong>sculpa: fico<br />
si<strong>de</strong>rado com a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> carros com <strong>um</strong>a só pessoa na estrada Sintra-Lisboa, parados<br />
durante horas, enquanto ao lado passa <strong>um</strong> comboio rápido, confortável e com acesso a interfaces<br />
centrais. Esqueci-me, por<strong>é</strong>m, <strong>de</strong> <strong>um</strong> pormenor: esta conversa não <strong>de</strong>ve fazer o mais pequeno<br />
sentido para os Torrejanos, que <strong>de</strong>vem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>slocar-se a p<strong>é</strong> para o trabalho, respirando o ar da<br />
manhã e parando para <strong>um</strong>a bica na esquina. Ou será que estou errado e Lisboa impôs <strong>um</strong>a vez<br />
mais o “carácter nacional” aos outros portugueses?<br />
A questão austríaca<br />
(“Jornal Torrejano”, 17.02.00)<br />
Em tempos (juvenis) vivi nos Estados Unidos em casa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a família <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us religiosos,<br />
cujos antepassados haviam fugido – da Polónia e da Rom<strong>é</strong>nia – às barbarida<strong>de</strong>s nazis mas,<br />
tamb<strong>é</strong>m, às <strong>de</strong> anti-semitismos menos organizados. Nunca para mim foi tão evi<strong>de</strong>nte e palpável<br />
o que <strong>é</strong> ser-se portador <strong>de</strong> <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a História: a dor e a perseguição marcam bem<br />
mais do que alg<strong>um</strong>as linhas <strong>de</strong> doutrinação nacionalista (eu NÃO me sinto <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte dos<br />
Descobridores, por exemplo…).<br />
Um belo dia (que digo eu?, <strong>um</strong> nefasto dia) cometi <strong>um</strong>a “gaffe”. Discutíamos não sei já o quê,<br />
quando <strong>de</strong>i por mim a utilizar a expressão “a questão judaica”. Caíram o Carmo e a Trinda<strong>de</strong>.<br />
68