Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
que a disciplina antropológica, como todas as ciências sociais, <strong>é</strong> muito logocêntrica. Comecei a<br />
preocupar-me mais com as questões que tivessem a ver com o corpo e a incorporação.<br />
EXP. – Algo que leva à ficção. Algo que não se consegue enten<strong>de</strong>r sem nos metermos em peles<br />
alheias.<br />
M.V.A. – Não estamos nada habituados a prestar atenção à fisicalida<strong>de</strong> das pessoas, ao espaço,<br />
à interacção física. Não sabemos como dar conta disso. Por isso o que eu escolhi agora, como<br />
futura investigação, tem a ver com aquilo em que o corpo e a incorporação são mais<br />
funmdamentais para produzir i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, que são a questão que tem a ver com a raça e as<br />
etnias. As classificações raciais locais, aquelas que se fazem ao nível do Estado e da Ciência,<br />
são todas baseadas n<strong>um</strong>a atenção ao corpo, na obsessão <strong>de</strong> o classificar atrav<strong>é</strong>s das suas cores,<br />
dos matizes da pele, do tipo <strong>de</strong> cabelo. E, ao mesmo tempo, como <strong>é</strong> que as pessoas transformam<br />
isso quando tentam ganhar <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nova? É <strong>um</strong> assunto que está na or<strong>de</strong>m do dia. Nem<br />
<strong>é</strong> preciso irmos ao caso extremo do Michael Jackson. Basta vermos como qualquer pessoa n<strong>um</strong>a<br />
al<strong>de</strong>ia do Brasil, ou das Caraíbas, manipula simbolicamente o corpo – e quando digo o corpo <strong>é</strong><br />
tamb<strong>é</strong>m tudo aquilo que o atavia: roupas, comportamentos, voz, etc. – como forma <strong>de</strong><br />
manipular a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> segundo ela <strong>é</strong> mais ou menos prestigiante n<strong>um</strong> <strong>de</strong>terminado<br />
momento histórico.<br />
EXP. – A <strong>um</strong> outro nível, o da política. Tinha <strong>um</strong>a crónica semanal. Quando começou a fazê-la,<br />
sentia que essa prática lhe estava a faltar, que era <strong>um</strong>a consequência natural do outro trabalho,<br />
ou mesmo o objectivo último...<br />
M.V.A. – Achei que havia espaço para fazer <strong>um</strong>a coisa chamada crítica cultural, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />
não temos que ser totalmente relativistas, não temos que explicar tudo o que acontece em<br />
socieda<strong>de</strong> e cultura nos seus próprios termos. Há que perceber que as culturas são feitas <strong>de</strong><br />
processos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e diferenciação, e esses processos têm razões i<strong>de</strong>ológicas muitas vezes não<br />
explicadas e causam injustiças. A minha i<strong>de</strong>ia era que, com o treino antropológico que eu tinha<br />
e com as minhas opiniões pessoais, eu podia escrever crónicas baseadas no quotidiano<br />
português – o qual po<strong>de</strong> incluir tanto os acontecimentos políticos como <strong>um</strong>a conversa com a<br />
minha vizinha n<strong>um</strong> vão <strong>de</strong> escada e a partir <strong>de</strong>sses pedaços do quotidiano, extrapolar alg<strong>um</strong>as<br />
i<strong>de</strong>ias provocatórias sobre o estado do viver em Portugal neste momento. Nunca fui tão<br />
chamado a intervir publicamente como <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que comecei a escrever as crónicas. Des<strong>de</strong> as<br />
associações <strong>de</strong> planeamento familiar às dos direitos dos homossexuais, at<strong>é</strong> aos congressos sobre<br />
mulheres e às coisas dos psiquiatras, dos sexólogos, dos m<strong>é</strong>dicos... Não pelos meios<br />
acad<strong>é</strong>micos, mas pelos directamente interventivos, <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social.<br />
EXP. – Tinha passado a primeira parte da vida a adquirir saber. Não o começou a preocupar<br />
sentir que às tantas havia passado <strong>de</strong> cientista social a <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> causas?<br />
M.V.A. – Vamos lá ver. A crónica <strong>é</strong> <strong>um</strong> espaço limitado, <strong>um</strong>a escrita ef<strong>é</strong>mera. Sempre tive o<br />
cuidado <strong>de</strong> não trivializar as coisas. Olhá-las sempre atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong> exemplo, permitindo a<br />
<strong>de</strong>fesa da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que outros exemplos podiam eventualmente conduzir a outras conclusões. E<br />
se vir bem, as coisas aparecem sempre sob a forma <strong>de</strong> hipóteses. Quem me podia ter acusado <strong>de</strong><br />
trivializar – os meus colegas – teve a reacção contrária. O mais importante para mim <strong>é</strong> que<br />
aprendi muito com elas; não no sentido <strong>de</strong> me doc<strong>um</strong>entar, mas sobre como <strong>é</strong> que se pensa e<br />
não se pensa. E aprendi muito com as asneiras que disse em crónicas anteriores e refaço em<br />
crónicas posteriores. Isso acontece com muita frequência em relação à realida<strong>de</strong> política imediata.<br />
Como ela <strong>é</strong> feita <strong>de</strong> pessoas, e elas têm comportamentos diferentes em alturas diferentes, a<br />
opinião po<strong>de</strong> modificar-se.<br />
EXP. – Falou das crónicas como <strong>um</strong>a intenção <strong>de</strong> crítica cultural e avaliação civilizacional do<br />
país. É capaz <strong>de</strong> res<strong>um</strong>ir agora essa avaliação?<br />
M.V.A. – É <strong>um</strong>a coisa muito simples, não <strong>é</strong> novida<strong>de</strong> nenh<strong>um</strong>a e outras pessoas já o fizeram, e<br />
que <strong>é</strong> o carácter semiperif<strong>é</strong>rico do país. Esse carácter não <strong>é</strong> circunstancial mas histórico, e cria<br />
<strong>um</strong>a situação extremamente ambígua em que temos gosto <strong>de</strong> estar em casa com meia dúzia <strong>de</strong><br />
falantes nesta língua, que vivem n<strong>um</strong> cantinho ro<strong>de</strong>ados pela Espanha mas on<strong>de</strong> as pessoas são<br />
215