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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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cómico, sobretudo quando os arg<strong>um</strong>entistas inventavam línguas eslavas ou os guardas prisionais<br />

sul-americanos falavam <strong>um</strong> inglês perfeito (mas com sotaque). No filme, não: os eventos que<br />

<strong>de</strong>spoletam a acção do filme passam-se em Praga. Um sítio real, com polícias falando checo. E<br />

<strong>um</strong>a Praga que <strong>é</strong> mostrada em todo o seu esplendor <strong>de</strong> país da Velha Europa, nobre e charmoso.<br />

Porque tudo isto se passa já <strong>de</strong>pois da queda do muro. Daí a atmosfera <strong>de</strong> melancolia que o<br />

filme tem: o traidor trai porque já não há nada em que acreditar, porque a guerra fria acabou.<br />

Era isto que esperávamos da queda do muro? Ter sauda<strong>de</strong>s do “antes”?<br />

Depois há o “clima”. A s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> televisão era lenta e eu irritava-me com isso. Mas era essa<br />

lentidão que criava ansieda<strong>de</strong> e <strong>um</strong>a atenção particular aos truques e malabarismos da equipa.<br />

No filme, a velocida<strong>de</strong> <strong>é</strong> vertiginosa. Tudo se passa a cem à hora, como se tivessem posto<br />

“speeds” nas pipocas. Do mesmo modo, se na s<strong>é</strong>rie a maior parte das cenas eram silenciosas –<br />

quase sem diálogos e quase sem música -, no filme tudo <strong>é</strong> cacafónico e estri<strong>de</strong>nte. Eles gritam,<br />

rosnam, estrebucham, explo<strong>de</strong>m e andam pela tela ao compasso d<strong>um</strong>a música da qual não fica a<br />

mais ínfima memória. É <strong>um</strong> imenso “vi<strong>de</strong>oclip”.<br />

Por fim, o filme <strong>de</strong>itou às urtigas o seu maior potencial: pegar no actual revivalismo dos anos<br />

sessenta. Já na altura em que vi a s<strong>é</strong>rie tudo parecia maravilhosamente ultrapassado: os<br />

computadores com cartões perfurados; as engenhocas com interruptores com <strong>um</strong>a bolinha <strong>de</strong><br />

metal na ponta; as etiquetas feitas com aquelas fitas autocolantes em que se gravava as letras em<br />

relevo; e a roupa, os carros, as coisas com <strong>um</strong> ar “high-tech” albanês. Uma <strong>de</strong>lícia. No filme só<br />

vemos computadores portáteis iguais aos dos espectadores e lá se vai a magia.<br />

<strong>Este</strong> filme <strong>é</strong> <strong>um</strong>a traição à memória. E <strong>é</strong> <strong>um</strong>a oportunida<strong>de</strong> falhada <strong>de</strong> fazer ironia com essa<br />

memória. O pior dos anos 90 holywoo<strong>de</strong>scos <strong>é</strong> a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inventar novas magias, ironias<br />

ou inocências. Por isso o que resta <strong>é</strong> o canibalismo: comem-nos vivos e <strong>de</strong>itam os ossos aos<br />

cães.<br />

Já não moro aqui.<br />

(Público, 06.10.96)<br />

O autocarro pára n<strong>um</strong>a área <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso na estrada entre Montr<strong>é</strong>al e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Quebeque. Um<br />

passageiro americano mete conversa com o condutor canadiano. Diz-lhe que acha tudo tão limpo<br />

e impecável que não acredita estar a uns poucos <strong>de</strong> quilómetros dos EUA (como estas coisas<br />

são relativas, pensa o português). O canadiano fica inchado e dá <strong>um</strong>a resposta tipicamente<br />

americana: “Fazemos por isso. As multas por <strong>de</strong>itar lixo são pesadas. E estamos sempre a<br />

limpar. Mas o que interessa <strong>é</strong> a mentalida<strong>de</strong>. Se as pessoas forem educadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeninas...”<br />

O americano acena que sim. Mas a sua memória <strong>é</strong> assaltada pela imagem <strong>de</strong> sujida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque (ambos fazem caretas ao pronunciar-se o nome da capital da perdição) e pelos grafitis da<br />

sua Los Angeles natal. Há <strong>um</strong> neurónio qualquer que choca com outro e ele encontra a<br />

explicação: “São os putos mexicanos, sabe. Eles são tantos que ningu<strong>é</strong>m os consegue<br />

controlar.” Então junta-se ao grupo outro americano que acrescenta à conversa o tom liberal:<br />

“Não culpe os mexicanos, coitados. O dinheiro todo do país <strong>de</strong>les está nas mãos <strong>de</strong> meia dúzia<br />

<strong>de</strong> famílias e <strong>de</strong>pois aínda há os barões da droga. Esses <strong>é</strong> que <strong>de</strong>viam ser mortos.<br />

O condutor manda-nos entrar para o autocarro. Ainda bem: pouco faltava para que algu<strong>é</strong>m<br />

dissesse que a vantagem do Canadá <strong>é</strong> não ter imigrantes <strong>de</strong> baixo calibre e, claro, muitos pretos.<br />

A autoestrada espraia-se pelo vale do São Lourenço. Há <strong>de</strong>z anos que não regressava à Am<strong>é</strong>rica<br />

do Norte, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter vivido vários anos nos EUA, em <strong>é</strong>pocas diferentes e com muitas visitas<br />

pelo meio. Sempre me senti <strong>um</strong> bocado americano em Portugal e <strong>um</strong> bocado português na<br />

Am<strong>é</strong>rica. Mas nos últimos <strong>de</strong>z anos esse sentimento foi-se esvaíndo e agora at<strong>é</strong> sentia medo do<br />

regresso. Por cautela, calhou ser primeiro o Canadá, <strong>um</strong>a versão “soft” da Am<strong>é</strong>rica do Norte. O<br />

Canadá era on<strong>de</strong> se ia, dos EUA, para ter a sensação <strong>de</strong> estar n<strong>um</strong> sítio <strong>um</strong> pouco mais europeu<br />

(na parte francófona). Mas <strong>de</strong>sta vez só vejo o que <strong>é</strong> americano: essa melancolia vagarosa e<br />

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