Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A Capital da Província<br />
(“Jornal Torrejano”, 04.11.99)<br />
Inicio hoje <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> artigos para “O Torrejano” e não encontro melhor estrat<strong>é</strong>gia <strong>de</strong><br />
arranque do que a <strong>de</strong> situar-me: e que coisa mais óbvia do que o estatuto <strong>de</strong> “intelectual”<br />
lisboeta a escrever para <strong>um</strong> jornal ribatejano? Serei, pois, “<strong>um</strong> correspon<strong>de</strong>nte da capital”,<br />
atento às bizarrias <strong>de</strong>ste lugar exposto às tempesta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sudoeste e on<strong>de</strong> as pessoas têm a<br />
estranha mania <strong>de</strong> alimentar os pombos. Mas que “capital” <strong>é</strong> esta?<br />
Um dos livros <strong>de</strong> que mais gosto <strong>é</strong> “A Capital”, do velho Eça. Não porque me transporte para<br />
realida<strong>de</strong>s distantes ou permita penetrar na psicologia h<strong>um</strong>ana. Antes pelo contrário: porque me<br />
puxa para a terra a toda a hora. Puxa-me para a minha terra, Lisboa. E que terra estranha, esta:<br />
os mesmos esquemas e traições, a mesma mesquinhez e novo-riquismo, ontem e hoje, Chiado<br />
acima ou Bairro Alto abaixo. A Lisboa do Eça e a Lisboa <strong>de</strong> hoje diferem mais em escala do<br />
que em qualida<strong>de</strong>. O Eça retratava o mundo bisonho do pequeníssimo grupo <strong>de</strong> jornalistas e<br />
intelectuais, vivendo à sombra <strong>de</strong> favores e influências, negociando coscuvilhice com a caneta,<br />
mas não muito longe do vão <strong>de</strong> escada das intrigas <strong>de</strong> vizinhança. Nos piores momentos, penso<br />
que Lisboa não mudou.<br />
Aquela Lisboa do Eça tinha outra característica que permanece hoje: a <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> armada<br />
em capital. Toda aquela rapaziada que se trama mutuamente no romance tinha chegado<br />
anteontem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> horas <strong>de</strong> tortura em comboios atrasados (at<strong>é</strong> nisto a coisa não mudou<br />
muito). Tinham vivido pequenos horrores provincianos, em salas e caf<strong>é</strong>s abafados, na<br />
temperatura e nas i<strong>de</strong>ias. N<strong>um</strong> momento <strong>de</strong> romantismo e vaga coragem, abalançavam-se para<br />
A Capital em busca <strong>de</strong> cosmopolitismo. Mas o que encontravam eram <strong>um</strong>a extensão da<br />
província, em ponto ligeiramente maior. Encontravam <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong>zinha cheia <strong>de</strong> outros<br />
camaradas vindos <strong>de</strong> salas e caf<strong>é</strong>s abafados. E todos se <strong>de</strong>dicavam alegremente à comezinha<br />
activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> Lisboa <strong>um</strong>a capital. Mas <strong>um</strong>a capital <strong>de</strong> província.<br />
O drama lisboeta <strong>é</strong> este: centro e periferia ao mesmo tempo, como ilustres sociólogos já<br />
ilustraram. Centro <strong>de</strong> <strong>um</strong> país, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong> país perif<strong>é</strong>rico. País que já foi centro, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
imp<strong>é</strong>rio <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. País que agora pertence ao centro europeu, mas que <strong>é</strong> nele perif<strong>é</strong>rico. “And<br />
so on”. Lisboa <strong>é</strong> <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não lisboetas. Aparte alg<strong>um</strong>as camadas populares (mesmo assim<br />
imigradas há poucas gerações) a cida<strong>de</strong> não gerou <strong>um</strong>a burguesia própria (ao contrário, por<br />
exemplo, <strong>de</strong> Barcelona); Lisboa <strong>de</strong>spreza a província, o que <strong>é</strong> <strong>um</strong> sinal <strong>de</strong> provincianismo<br />
(choca-me a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lisboetas, sobretudo jovens, que nunca foram ao Porto, nem querem<br />
ir!); e Lisboa idolatra tudo o que seja “internacional” (se pu<strong>de</strong>sse virava capital do<br />
“franchising”).<br />
Mas as coisas mudam. Lentamente, mas mudam. A sedimentação das gerações dos migrados<br />
dos campos; o fluxo <strong>de</strong> imigrantes <strong>de</strong> outros continentes; os estrangeiros que aqui se refugiam; a<br />
suburbanização (que não <strong>é</strong> só negativa: <strong>é</strong> nos subúrbios que a vida <strong>de</strong> caf<strong>é</strong> sobrevive); o<br />
crescente anonimato e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> marginalizados <strong>de</strong> todo o país (<strong>é</strong>tnicos,<br />
políticos, sexuais) dão indícios do surgimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tipo novo.<br />
Detesto a Lisboa armada em tola, <strong>de</strong> telemóvel, Colombo e carro-com-<strong>um</strong>a-só-pessoa a entupir<br />
a ponte. Mas gosto da Lisboa on<strong>de</strong> o Presi<strong>de</strong>nte da República toma a bica no caf<strong>é</strong> da esquina e<br />
c<strong>um</strong>primenta os meus pais todos os dias, perante a incredulida<strong>de</strong> dos turistas americanos. É<br />
<strong>de</strong>stas e doutras contradições da “selva urbana” (enfim…) que vos vou escrever.<br />
Correspon<strong>de</strong>nte da capital…da província.<br />
O abaixo-assinado<br />
(“Jornal Torrejano”, 25.11.99)<br />
62