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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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Caso contrário nunca chegaremos ao ponto do orgulho máximo: que algu<strong>é</strong>m por esse mundo<br />

fora, nos tente imitar. Queremos continuar a ser metaforicamente – como o título <strong>de</strong> outro livro<br />

<strong>de</strong> Naipaul – “The Middle Passage” – a velha rota atlântica da escravatura? Ou vamos<br />

aproveitar o potencial <strong>de</strong> estar no meio?<br />

Mil maneiras <strong>de</strong> morrer<br />

(Público, 12.01.97)<br />

Na última emissão da “Noite da Má Língua”, <strong>de</strong>dicada ao caso da polícia <strong>de</strong> Évora, Rui Zink<br />

empunhou <strong>um</strong> cartaz on<strong>de</strong> se podia ler: “Matar <strong>é</strong> feio”. Parece <strong>de</strong>magogia ? Pois não <strong>é</strong>.<br />

Demagógica <strong>é</strong> a <strong>de</strong>rrapagem <strong>de</strong> sentido que se tem verificado em torno do caso. As atenções<br />

passaram a concentrar-se na questão do sindicato da polícia; o estranho sentido <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or (ou<br />

falta <strong>de</strong>le) da gente <strong>de</strong> direita concentra-se na suposta protecção dos criminosos por parte da<br />

esquerda; o ministro <strong>de</strong>mite o general, para apenas o substituir por algu<strong>é</strong>m da corporação; e a<br />

transformação da polícia n<strong>um</strong>a força civil fica-se pelas intenções, certamente porque Alberto<br />

Costa (como Guterres) acreditam que as intenções e as palavras transformam o mundo<br />

(enquanto este se <strong>de</strong>smorona factualmente à sua volta).<br />

“Matar <strong>é</strong> feio” porque já nos basta a morte natural ou aci<strong>de</strong>ntal como enigma e <strong>de</strong>stino. Não<br />

po<strong>de</strong>mos suportar – ningu<strong>é</strong>m po<strong>de</strong>, em parte alg<strong>um</strong>a – que as mortes que não são naturais não<br />

sejam esclarecidas nas suas causas e apuradas as responsabilida<strong>de</strong>s e tomadas as medidas que<br />

evitem a reincidência. Por isso o homicídio <strong>é</strong> (ou <strong>de</strong>via ser) o crime mais grave. Do mesmo<br />

modo, qualquer imbecil sabe – ou <strong>de</strong>via saber – que os milhares <strong>de</strong> mortes provocadas pelas<br />

guerras, genocídios e terrorismos, não são mortes naturais ou aci<strong>de</strong>ntais. Há responsáveis por<br />

trás <strong>de</strong>las, e estes <strong>de</strong>scobrem-se seguindo-se as pistas dos interesses económicos e políticos.<br />

Mesmo assim, a história da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> <strong>é</strong> feita <strong>de</strong> justificações (e auto-convencimentos)<br />

<strong>de</strong>magógicos baseados no patriotismo, na f<strong>é</strong> e nas i<strong>de</strong>ias.<br />

Do mesmo modo que muita gente aceita estas formas <strong>de</strong> homicídio estatal e social, assim se<br />

aceita cada vez mais com <strong>um</strong> encolher <strong>de</strong> ombros as mortes por aci<strong>de</strong>nte, lapso, ou causas<br />

inexplicáveis, ou porque se tem <strong>um</strong>a f<strong>é</strong> cega nos especialistas ou porque se promove a<br />

segurança a “valor mais alto”. Entre nós – e só em Portugal os últimos anos têm sido pródigos<br />

em casos <strong>de</strong>stes – há <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> morte para a qual não <strong>de</strong>víamos aceitar a explicação do acaso,<br />

do azar, do aci<strong>de</strong>nte. Trata-se da morte causada por negligência por parte <strong>de</strong> especialistas ou do<br />

Estado, ou da morte causada pelo abuso do po<strong>de</strong>r. Os exemplos vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o “velho” caso dos<br />

hemodialisados <strong>de</strong> Évora at<strong>é</strong> às mortes nas esquadras, passando pelas previsíveis vítimas das<br />

“vacas loucas”, que não tarda muito estarão nas manchetes.<br />

Felizmente ainda temos alguns valores que nos permitem sentir que este tipo <strong>de</strong> morte não po<strong>de</strong><br />

ser passada por cima sem o apuramento <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s e a tomada <strong>de</strong> medidas que evitem<br />

a reincidência. São mortes para as quais não há luto possível, seguido <strong>de</strong> esquecimento. Porque<br />

o luto para estas mortes <strong>é</strong> <strong>um</strong> luto colectivo. At<strong>é</strong> se po<strong>de</strong> exagerar a imagem: são mortes que<br />

<strong>de</strong>viam levar os ocupantes <strong>de</strong> cargos políticos a vestirem <strong>de</strong> preto. A razão para tudo isto <strong>é</strong> que<br />

os agentes – voluntários ou involuntários – <strong>de</strong>stas mortes, são pessoas que trabalham em<br />

instituições que <strong>de</strong>têm duas coisas exigindo responsabilida<strong>de</strong> acrescida: ou <strong>um</strong> saber po<strong>de</strong>roso<br />

que não <strong>é</strong> partilhado pelo com<strong>um</strong> dos cidadãos (o caso da medicina ou da farmácia), ou <strong>um</strong><br />

po<strong>de</strong>r (armado) que <strong>é</strong> cedido pelos cidadãos (o caso da polícia).<br />

Quando algu<strong>é</strong>m – mesmo a pessoa mais <strong>de</strong>testável do mundo – morre às mãos da polícia como<br />

nos casos recentes, <strong>é</strong> preciso perceber, primeiro, que não morreu <strong>de</strong> outras causas: morte<br />

natural, aci<strong>de</strong>ntal (mesmo assim duvidosa: quantos assassínios por negligência não vemos nas<br />

estradas portuguesas?), na guerra, na “luta por <strong>um</strong> i<strong>de</strong>al”, por negligência m<strong>é</strong>dica, por incúria ou<br />

ignorância <strong>de</strong> outr<strong>é</strong>m. E <strong>é</strong> preciso perceber que não morreu na sequência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a troca <strong>de</strong> tiros<br />

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