Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
experimental. Quando estes <strong>de</strong>claram não conseguir explicar os fenómenos do ponto <strong>de</strong> vista<br />
científico, então a igreja consi<strong>de</strong>ra a hipótese <strong>de</strong> aceitar o milagre.<br />
A segunda posição <strong>é</strong> sem dúvida ambígua, mas talvez porque tem sido mal <strong>de</strong>finida. Não se<br />
po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> facto, especular eternamente sobre hipot<strong>é</strong>ticos momentos <strong>de</strong>cisivos em que vida<br />
passaria a existir, contra momentos anteriores <strong>de</strong> <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> “não-vida”. Preocupados –<br />
legitimamente – com os problemas sociais, psicológicos e <strong>de</strong> direitos das mulheres em causa na<br />
questão do aborto, os <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong>sta posição acabam por se esquecer <strong>de</strong> mostrar como o<br />
<strong>de</strong>bate está viciado. O uso <strong>de</strong> arg<strong>um</strong>entação biológica para justificar a posição moral católica<br />
romana pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> <strong>um</strong> vício <strong>de</strong> arg<strong>um</strong>entação. Seria mais legítimo se os católicos convictos<br />
falassem em termos <strong>de</strong> criação divina da vida a partir do momento da concepção (e at<strong>é</strong> antes,<br />
nesse caso). Assim como seria bem mais legítimo se os que se posicionam no campo contrário<br />
<strong>de</strong>finissem melhor o que querem dizer: que a noção <strong>de</strong> “vida” não se po<strong>de</strong> reduzir à <strong>de</strong>finição<br />
biológica.<br />
A <strong>de</strong>finição biológica <strong>de</strong> vida serve bem os propósitos dos sectores conservadores católicos<br />
romanos porque <strong>é</strong> dogmática. Esta igreja percebeu bem como os seus dogmas têm sido<br />
substituídos pelos da ciência. Isto <strong>é</strong> patente, por exemplo, na influência cada vez maior dos<br />
“m<strong>é</strong>dicos católicos” nos conselhos <strong>de</strong> <strong>é</strong>tica das ciências da vida. A igreja apropria-se dos<br />
“diktats” científicos, esquecendo que a ciência <strong>é</strong> <strong>um</strong> produto cultural, logo pol<strong>é</strong>mico. E faz da<br />
biologia <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> história <strong>de</strong>tectivesca <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta dos <strong>de</strong>sígnios divinos. Parece-me<br />
que a “vida” <strong>de</strong>ve ser vista <strong>de</strong> outra perspectiva: <strong>um</strong>a existência biológica indissociável da<br />
existência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a inserção <strong>de</strong>ssa Pessoa em laços sociais.<br />
Tomemos <strong>um</strong> exemplo doutro contexto: o que nos choca quando lemos notícias sobre<br />
homicídios ou genocídios não <strong>é</strong> a abstracção da morte <strong>de</strong> <strong>um</strong> ou vários corpos, <strong>de</strong> “unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
vida biológica”. O que nos choca <strong>é</strong> a morte <strong>de</strong> pessoas, que sabemos (mesmo quando não as<br />
conhecemos) terem nomes, sentimentos, crenças, pais, irmãos, projectos e por aí fora.<br />
Quando as mulheres abortam não o fazem necessariamente <strong>de</strong> forma leviana. Fazem-no com<br />
hesitação e com dor. Mas sabem que não estão a fazer algo da mesma or<strong>de</strong>m que o homicídio,<br />
pois sabem que o feto não <strong>é</strong> ainda <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal engajada em relações inter-pessoais.<br />
Sabem que não <strong>é</strong> <strong>um</strong>a Pessoa. Por vezes hesitam, pensando: “Mas se este feto <strong>é</strong> o resultado da<br />
minha relação com x, então <strong>de</strong> certo modo já <strong>é</strong> <strong>um</strong>a pessoa”. O bom senso diz-lhes, por<strong>é</strong>m, que<br />
não <strong>é</strong> bem assim: quando a concepção resulta do acaso ou do erro, ou quando acontece n<strong>um</strong>a<br />
situação psicológica ou social em que a vida da futura pessoa vai ser má (isto <strong>é</strong>, com <strong>um</strong>a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> complicada e sem laços sociais dignos <strong>de</strong>sse nome), há que tomar <strong>um</strong>a <strong>de</strong>cisão. A<br />
<strong>de</strong>cisão das mulheres <strong>é</strong> h<strong>um</strong>ana e socialmente muito mais difícil e rica do que a dos homens<br />
biólogos e católicos que se arrogam o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir tecnicamente a vida.<br />
A questão da vida d<strong>um</strong> feto não <strong>é</strong> nem <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> ciência nem <strong>de</strong> essência. É <strong>um</strong>a questão<br />
<strong>de</strong> existência, a <strong>de</strong>bater e a viver <strong>de</strong> modos diferentes pelas pessoas vivas que fazem (ou não)<br />
fetos.<br />
Contaminados<br />
(Público, 10.11.96)<br />
Nos últimos anos o Estado português <strong>de</strong>monstrou ser incapaz <strong>de</strong> c<strong>um</strong>prir as suas obrigações<br />
para com os cidadãos no que respeita aos cuidados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e à salvaguarda das suas vidas.<br />
Primeiro foi o caso dos hemodialisados <strong>de</strong> Évora, <strong>de</strong>pois o dos hemofílicos contaminados com o<br />
vírus do VIH. Ao todo morreram <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> pessoas. E os respectivos processos <strong>de</strong> apuramento<br />
<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s foram (e estão a ser) dúbios. Pior: o Estado não ass<strong>um</strong>iu frontalmente as<br />
consequências.<br />
48