Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
fizeram os ataques do 11 <strong>de</strong> Setembro. E esses bárbaros e as suas “i<strong>de</strong>ias” são o resultado quer<br />
da <strong>de</strong>silusão com os mo<strong>de</strong>los do socialismo real quer da <strong>de</strong>silusão com as promessas, não<br />
c<strong>um</strong>pridas, <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> atrav<strong>é</strong>s do mercado, do capitalismo e do alinhamento com os Estados<br />
Unidos. Mas o elemento crucial <strong>é</strong> este: foram alimentados anos a fio pelos governos <strong>de</strong><br />
Washington. Detesto imagens moralistas, mas aqui vai: trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> caso clássico <strong>de</strong> aprendiz<br />
<strong>de</strong> feiticeiro.<br />
No momento em que se prepara <strong>um</strong>a guerra, prepara-se tamb<strong>é</strong>m <strong>um</strong>a operação <strong>de</strong> propaganda,<br />
para convencer os mais pacifistas. Um arg<strong>um</strong>ento estafado <strong>é</strong> o que diz que os pacifistas estão a<br />
esquecer-se do 11 <strong>de</strong> Setembro. Ora, o que <strong>de</strong> facto se passa <strong>é</strong> que quem usa o 11 <strong>de</strong> Setembro<br />
como <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> Holocausto, está a apropriar-se da trag<strong>é</strong>dia <strong>de</strong> Nova Iorque e a tentar<br />
pren<strong>de</strong>r as opiniões e as consciências, levando-as a aceitar toda e qualquer acção b<strong>é</strong>lica. Não<br />
concordo a cem por cento com alg<strong>um</strong>as posições contra a guerra, pois acho que há formas<br />
legítimas <strong>de</strong> intervenção militar. Mas sei que o Conselho <strong>de</strong> Segurança <strong>é</strong> o resultado <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
equilíbrio <strong>de</strong>sequilibrado, em que alguns países têm direito <strong>de</strong> veto e outros não. É, ainda, <strong>um</strong><br />
resto da guerra fria, que terá que ser alterado. Só que essa alteração não po<strong>de</strong> ser feita pelo<br />
unilateralismo dos EUA, mas por <strong>um</strong> novo multilateralismo. Por isso esta guerra contra o Iraque<br />
<strong>é</strong> inaceitável, pois ela servirá sobretudo para a afirmação <strong>de</strong>sse unilateralismo. Não tem nada a<br />
ver com o 11 <strong>de</strong> Setembro. E não <strong>é</strong> ali, no Iraque, que está a raiz do problema terrorista e<br />
fundamentalista. Ela está no apoio americano a esses grupos no passado, está no conflito do<br />
m<strong>é</strong>dio-oriente e está, cada vez mais, nas atitu<strong>de</strong>s americanas. Isto para já não falar nos efeitos<br />
globais e locais do neo-liberalismo e da paulatina <strong>de</strong>struição da social-<strong>de</strong>mocracia com a<br />
justificação da queda do socialismo.<br />
Mas as coisas reconstituem-se. Neste momento o movimento anti-guerra – mesmo com a sua<br />
diversida<strong>de</strong> interna – tem duas características interessantes. A primeira <strong>é</strong> que <strong>é</strong> <strong>um</strong> movimento<br />
<strong>de</strong> pessoas com inocência perdida, isto <strong>é</strong>, ningu<strong>é</strong>m (a não ser alguns doidos ou fósseis) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
regimes e lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> inspiração “sovi<strong>é</strong>tica”, como no s<strong>é</strong>culo XX. Ningu<strong>é</strong>m <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Saddam ou o<br />
seu regime, muito menos terroristas e fundamentalistas. A segunda <strong>é</strong> que <strong>é</strong> <strong>um</strong> movimento<br />
pare<strong>de</strong>s meias com os movimentos por <strong>um</strong>a globalização alternativa – os quais, apesar <strong>de</strong><br />
muitas dúvidas que coloquem em termos i<strong>de</strong>ológicos e <strong>de</strong> eficácia, se unem pela crítica radical<br />
ao mo<strong>de</strong>lo neo-liberal, sem que o “socialismo real” ou as libertações nacionais sejam vistas<br />
como alternativas (ao contrário do que acontecia no s<strong>é</strong>culo XX).<br />
Os actuais movimentos têm dois inimigos: os terroristas/fundamentalistas/ditadores, e o governo<br />
<strong>de</strong> Washington. Ningu<strong>é</strong>m os igualiza, e tal nem sequer <strong>é</strong> necessário. Há diferenças claras no<br />
plano da <strong>de</strong>mocracia, da legitimação ou não do uso da força, etc. Mas essas diferenças anulamse<br />
no gran<strong>de</strong> esquema das coisas, pois a alternativa “socialismo ou barbárie” coloca claramente<br />
no segundo campo os dois inimigos <strong>de</strong> quem quer <strong>um</strong> mundo melhor: pelas armas ou pela<br />
economia, <strong>é</strong> a barbárie que se está a instalar. Quanto ao que possa ser o socialismo, não<br />
sabemos. A não ser que será certamente algo <strong>de</strong> radicalmente diferente das burocracias e dos<br />
complexos militares e industriais do “socialismo real”, e algo <strong>de</strong> mais arrojado que o Estadoprovidência<br />
que conhecemos. Será tão diferente, que nem sequer precisará <strong>de</strong> chamar-se<br />
“socialismo”. Se calhar, bastará chamar-se <strong>de</strong>mocracia – aquela que, para lá dos direitos<br />
políticos, garante tamb<strong>é</strong>m os económicos, sociais, i<strong>de</strong>ntitários e ambientais.<br />
Para já, para já, precisamos <strong>de</strong> salvaguardar duas realida<strong>de</strong>s que estão sob ataque: as conquistas<br />
da social-<strong>de</strong>mocracia e o direito internacional. Quem diria, há uns anos, que teríamos que cerrar<br />
fileiras para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r ambas dos ataques dos bárbaros instalados em Washington, Londres,<br />
Bagdad ou Rhiad?<br />
Quatro razões para <strong>um</strong> estado <strong>de</strong> nervos<br />
(Webpage, 15.03.03)<br />
158