Revista (PDF) - Universidade do Minho
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DIACRÍTICA<br />
Teve eco bem nota<strong>do</strong> o contraste entre o aparato religioso, material<br />
e ritual, e a indigência e falta de piedade e moral <strong>do</strong> povo. As festas<br />
religiosas e procissões são lidas normalmente como divertimento,<br />
alguns chamam-lhe mesmo profanação, e, como outros actos de culto,<br />
desempenham a função de meros apazigua<strong>do</strong>res de consciências ou<br />
estratégia de esquecimento e diluição das agruras da vida e <strong>do</strong>s deveres<br />
sociais. É em Portugal que se vêem os criminosos ir à igreja, antes de<br />
perpetrarem o seu crime, para receber sacramentos e pedir coragem<br />
para prática <strong>do</strong> acto, conta Bourgoing através <strong>do</strong> duque de Chatelet.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, o indigente povo, tão carrega<strong>do</strong> de impostos para pagar<br />
faustos reais, da nobreza e episcopais 62 , paga ainda outras taxas com<br />
o falso carácter de voluntaria<strong>do</strong>, para estas manifestações exteriores<br />
da sua fé 63 .<br />
Uma das imagens mais profundamente gravadas na memória <strong>do</strong>s<br />
visitantes de Portugal, foi a da insegurança. Ladroagem e assassinatos<br />
aparecem como coisa vulgar em Lisboa, o que faz denotar a falta de<br />
policiamento existente. A diferença de perigo que existe nos caminhos<br />
entre Espanha e Portugal, conclui Ranque com benefício para o nosso<br />
país, deve-se à concentração em Lisboa <strong>do</strong>s gatunos que podem aí<br />
andar à vontade. Como reforço da situação, avançam alguns a quase<br />
total impunidade existente, além da demora na aplicação da justiça,<br />
sobretu<strong>do</strong> nos grandes crimes, o que causava enorme perplexidade em<br />
Pierre Carrere 64 que apontava várias graves consequências <strong>do</strong> facto.<br />
Este ambiente generaliza<strong>do</strong> de criminalidade fez até com que Ruders<br />
começasse a descobrir algum senti<strong>do</strong> nas execuções sumárias de<br />
criminosos, como solução de combate a tal flagelo 65 .<br />
Prendem-se a esta última duas questões também generalizadamente<br />
anotadas: a das prisões e a da mendicidade. Quanto às primeiras,<br />
a desumanidade é retratada como chocante, pelas condições que<br />
chegam a ser descritas como inferiores às <strong>do</strong>s currais <strong>do</strong> ga<strong>do</strong>; quanto<br />
à mendicidade, a indigência verdadeira expõe-se la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com a<br />
preguiça <strong>do</strong>s sadios e aptos ao trabalho. Daqui resulta que os men-<br />
——————————<br />
62 P. CARRERE (op. cit.: 290-92) chama à sede patriarcal, o papa<strong>do</strong> de Lisboa, tal era<br />
a opulência material e humana que o enquadrava. Outros o referem, aliás, por tanto<br />
dar nas vistas.<br />
63 RUDERS (op. cit.: 53) estabelece o contraste entre a grandeza das procissões e a<br />
pequenez <strong>do</strong> respeito e da fé, bem como com a intensidade <strong>do</strong>s gastos suporta<strong>do</strong>s por<br />
quem tem dificuldade em arranjar de comer.<br />
64 Ib.: 197.<br />
65 RUDERS, op. cit.: 245.