Revista (PDF) - Universidade do Minho
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DIACRÍTICA<br />
Com efeito, o outro pólo da tradição – a inovação – requer, segun<strong>do</strong><br />
Paul Ricoeur, o discernimento das promessas não prosseguidas<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na releitura das tradições transmitidas: o passa<strong>do</strong> não é só<br />
o volvi<strong>do</strong>, o que teve lugar e não pode mais ser muda<strong>do</strong>: «ele está vivo<br />
na memória graças às flechas de futuridade que não foram projectadas<br />
ou cuja trajectória foi interrompida»; assim, não só «o futuro não realiza<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> constitui talvez a parte mais rica duma tradição», mas<br />
«a libertação desse futuro não cumpri<strong>do</strong> <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> é o benefício<br />
maior que se pode esperar <strong>do</strong> cruzamento das memórias e da troca das<br />
narrações» 149 .<br />
Ademais, tradições, uma língua comum, narrativas, um solo<br />
comum, não bastam para legitimar uma comunidade; requer-se que<br />
as tradições sejam expostas à crítica, à dúvida, ao debate público.<br />
A questão da identidade colectiva não consiste, então, apenas numa<br />
identidade colectiva narrativa, fundada nas narrações que uma comunidade<br />
faz de si mesma, isto é, sobre a força integra<strong>do</strong>ra de tradições<br />
partilhadas, transmitidas, reactivas; funda-se antes numa identidade<br />
argumentativa, que supõe, da parte da comunidade, uma relação reflexiva<br />
consigo mesma (isto é, uma distanciação crítica relativamente<br />
a si mesma) 150 .<br />
Outros valores antinómicos há que são constitutivos da pessoa,<br />
entre os quais avultam logo a liberdade e responsabilidade. Não iremos<br />
agora dilucidar essa relação, mas apenas referir que Rougemont extraiu<br />
um certo número de implicações no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> civismo –um<br />
termo fora de moda –, pois não haverá cidadania europeia sem civismo<br />
——————————<br />
149 Paul Ricœur, «Quel éthos nouveau pour l’Europe?», in: P. Koslowski, Imaginer<br />
l’Europe: le marché intérieur européen, tâche culturelle et économique, Paris, Les Éditions<br />
du Cerf, 1992, p. 112.<br />
Sobre o tema, cf. o nosso trabalho, «La Europa que viene: universalismo y diferencias»,<br />
<strong>Revista</strong> Internacional de Filosofía Política, n.º 19, Julho 2002, pp. 109-128.<br />
150 Cf. E. Delruelle, «Identité allemande et Europe dans l’éthique de J. Habermas»,<br />
in: M. Perrin (ed.), L’Idée de l’Europe au fil de Deux Millénaires, op. cit., p. 260-261 ss.<br />
A este propósito, escreve Habermas: «A identidade pós-tradicional perde to<strong>do</strong> o carácter<br />
substancial, to<strong>do</strong> o carácter ingénuo; ela só existe no mo<strong>do</strong> da controvérsia pública,<br />
argumentativa, em torno da interpretação <strong>do</strong> que pode ser um patriotismo constitucional,<br />
cuja concretização pontual é sempre o fruto das nossas condições históricas»<br />
(Jürgen Habermas, Écrits politiques: culture, droit, histoire, tr. Ch. Bouchindhomme e<br />
R. Rochlitz, Paris, Les Éditions du Cerf, 1990, p. 260). Assim, Habermas, por exemplo,<br />
a propósito da Alemanha, opõe-se a toda a tentativa de fundar uma identidade colectiva<br />
na tradição; atribuir ao já-aí da língua, <strong>do</strong> solo, das narrativas partilhadas, a capacidade<br />
para legitimar uma comunidade é condenar-se a conceber uma comunidade como<br />
ethnos e não como demos.