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Baixar - Proppi - UFF

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corredor, sem porta divisória, passava-se à cozinha. Chamou minha atenção um dos<br />

fogões estarem ligados. Pratos sem lavar na pia e mamadeiras com leite na bancada. Em<br />

frente uma porta separava o quarto da senhora e, posteriormente, seguia-se a sala.<br />

Correspondia ao antigo ambiente do comércio. Havia uma televisão ligada, mas<br />

ninguém assistindo. A sala estava cheia de objetos e roupas. A maioria para crianças.<br />

Havia garrafas vazias, um fogão sem uso, tabuas de uma antiga cama e móveis velhos<br />

cobertos de bonecos de pelúcia e mantas de inverno, dentre eles duas cestas para bebês<br />

cobertas de objetos. Saindo novamente ao corredor e subindo a escada, acessava-se a<br />

um terraço e a mais um quarto. Era o quarto do casal e das crianças, pois havia uma<br />

cama dupla, uma individual e um berço. Todas sem arrumar. O espaço do quarto se<br />

completava com um armário. No terraço, havia roupa estendida, a maioria de homem.<br />

Em todos os cantos, objetos velhos e sacos de lixo.<br />

O olhar de Valeria, Alicia e Claudio, o fotógrafo, chamou minha atenção para<br />

vários outros aspectos da casa não percebidos, nem procurados por mim. Eram os<br />

primeiros sinais que mostravam o quanto categorias como “cheiro”, “barulho”, ou<br />

“sujeira” podiam ser relativas a modos de viver e morar 192 . Valeria e Alicia abriam<br />

todas as portas dos armários, olhavam embaixo da cama, levantavam as mantas. Claudio<br />

fotografou cada um desses momentos: baratas e formigas na bancada da cozinha;<br />

baratas mortas na geladeira; um prato sujo e vazio dentro; medicamentos no freezer<br />

junto a dois copos de cerveja gelando; fraldas sujas na cozinha; uma camisinha usada<br />

embaixo da cama; a panela com macarrão e água; a roupa jogada; a roupa quase<br />

exclusivamente masculina no armário; uma garrafa de uísque sem abrir; um tênis<br />

masculino novo; a televisão ligada; a louça sem lavar; as garrafas de sidra vazias; os<br />

bonecos; a senhora na cama coberta de mantas, apesar do calor de dezembro; latas de<br />

atum abertas e vazias no terraço. Tais fotos seriam posteriormente incorporadas ao<br />

192 Mary Douglas, no início de seu livro “Pureza e Perigo”, afirma a “sujeira” ser uma noção relativa:<br />

“Não há sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a vê” (1976:12). Por sua parte, Abdelmalek Sayad<br />

(1997), através de entrevistas em um bairro de “casas sociais” na periferia de Paris, analisa os conflitos<br />

surgidos entre residentes franceses e imigrantes. Na análise, mostra como o “barulho” e o “mau cheiro”<br />

eram categorizados conforme os costumes de cada grupo. O pai da família árabe entrevistada dizia: “o<br />

barulho era na realidade as numerosas visitas que tínhamos” e a filha acrescenta: “é a mesma coisa com<br />

os odores (...) O jornal disse que os franceses gostam de comer cuscuz e salsicha apimentada, mas quando<br />

não é para eles, o odor da cozinha árabe é insuportável!” (1997:41). Tais afirmações sobre o “barulho” ou<br />

o “mau cheiro” mostram, para Sayad, a incompatibilidade de “costumes em matéria de coabitação”<br />

(1997:35) e parecem indicar também seu uso como categorias de acusação eficazes na deslegitimação de<br />

modos de vida diferentes. Durante o processo que investigara a vida de Marisa e Carlos a utilização de<br />

tais categorias de acusação se fez presente pela boca de vizinhos e outros profissionais que<br />

testemunharam judicialmente.<br />

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