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Baixar - Proppi - UFF

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Alicia: sua senhora gosta de cozinhar, ela é de comer?<br />

Carlos: sim, ela gosta de massa.<br />

Alicia: o senhor comia sozinho?<br />

Carlos: com ela [Marisa], com Sabrina e Paula. Eu lhes dava um pedacinho de<br />

comida porque elas já tinham jantado. Agora até Sabrina já come de tudo, Paula<br />

e Mauro também, quem é mais difícil é Ariel.<br />

Carlos deu conta, nestes trechos, da cotidianidade que mantinha com sua mulher<br />

e seus filhos. Levar facturas, fazer um asadito, ir ao parque, comer em família no<br />

domingo, jantar em companhia da mulher e dos filhos, após uma jornada de trabalho,<br />

são ritos que podem caracterizar uma família argentina tipo. Estava, pois, colocando sob<br />

avaliação um padrão de vida familiar e doméstica ‘dominante’ na sociedade argentina.<br />

Nele, a rotina de partilhar ‘em família’ a sociabilidade do lar, em especial, aquela<br />

vinculada à alimentação, é um valor destacado como símbolo de uma ‘família unida e<br />

harmônica’. Embora tal representação ideal não tenha nenhum valor universalizável 203 ,<br />

no contexto no qual os hábitos de Carlos e Marisa estavam sendo avaliados (e julgados),<br />

a descrição e comprovação desses hábitos significavam muito mais do que sua inscrição<br />

nos valores dominantes. Simbolizavam também o respeito às obrigações morais<br />

próprias das relações de parentesco, especificamente, dos laços de filiação.<br />

Uma vida “pobre, mas linda”, “como uma família qualquer”, dizia Carlos.<br />

Contrapunham-se a essa imagem as interrogações de Valeria e Alicia, concordantes com<br />

outras visões levadas ao processo. Nelas primava um pai preocupado com sua própria<br />

imagem – seu armário com roupas novas e arrumadas, “sempre de ponta em branco”-,<br />

bem alimentado – “gordinho”-, eventualmente agressivo, e, sobretudo, descuidado com<br />

os filhos e com sua alimentação e saúde. Um modelo de família, enfim, que não<br />

cotidianas. Então, quando Carlos diz que “levava facturas” não está só falando da alimentação da família,<br />

mas de um rito de sociabilidade que todos partilhavam, no único dia em que ele estava em casa.<br />

203 Como assinala Françoise Zonabend, os códigos de conduta que regulam as relações de parentesco, por<br />

ser este um “fato social” e não biológico, diferem em sociedades distintas (1986:31). Embora, no<br />

Ocidente, estejamos habituados a conceber a vida conjugal ocupando um espaço, no qual se desenvolve<br />

sua vida íntima e no qual o casal reside com seus filhos, as sociedades têm resolvido de maneiras<br />

sumamente diversas a coabitação, chegando, inclusive a excluí-la (1986:74). Zonabend exemplifica com<br />

casos distintos: os “maridos furtivos” dos menangkabau, os “esposos visitadores” entre os ashanti, os<br />

“cônjuges ausentes” dos nayar, como exemplos que ilustram a existência de “família” sem necessidade<br />

vida em comum entre os pais. Também assinala que as atitudes que um parente deve adotar com respeito<br />

a outro não são comuns em todos esses códigos. Daí, por exemplo, que entre os gourmanché do Alto<br />

Volta um pai e um filho não devam compartilhar a mesma tenda, nem comer, nem sequer se sentar juntos<br />

(1986:31). Os hábitos de sociabilidade conjuntos e partilhados como símbolo de existência de uma<br />

“família” são apenas valores próprios de uma forma particular de conceber a vida doméstica e as relações<br />

de parentesco.<br />

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