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Baixar - Proppi - UFF

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A crescente intervenção de Valeria no depoimento, continuada com as perguntas<br />

de Alicia, parecia-me também acompanhada por uma intervenção cada vez maior na<br />

vida de Marisa e Carlos: se ela limpava, quando limpava, se trocava os lenços, se ela<br />

comia, por que não comia, qual horário comia. Parecia-me estar assistindo a uma<br />

passagem do julgamento do estado de saúde das crianças, ao julgamento do estado da<br />

casa, da organização da vida doméstica, da limpeza e da sujeira, do cuidado e da<br />

desatenção. Para Valeria e Alicia, os dois aspectos não estavam separados, nem eram<br />

independentes. A conduta de Marisa e de Carlos sobre o cuidado geral da casa, das<br />

outras crianças e dela mesma era um dado fundamental para a determinação das<br />

responsabilidades sobre o acontecido: a morte de Rodrigo e as lesões em Sabrina. Por<br />

isso, também era colocada em questão a disponibilidade de Marisa para aceitar, ou não,<br />

ajuda. Como uma forma de avaliação sobre sua capacidade de “se dar conta” das<br />

dificuldades nas quais se encontravam ela e seus filhos.<br />

Alicia: você recebeu roupa para as crianças, não recebeu?<br />

Marisa: sim, está do lado do armário, na loja [a sala que era uma loja].<br />

Alicia: você brigou com os vizinhos?<br />

Marisa: não, nunca tive nem um sim nem um não, por isso estranho que tenham<br />

saído com tudo isto. Antes que morresse Rodrigo, a única que lhe dava alguma<br />

coisa era Silvia, de frente de casa, porque ninguém me dava nada antes. Os<br />

gêmeos tinham um berço que ganharam da Silvia. Ela diz que quer ser a<br />

madrinha e eu lhe disse que não. Ela quer ser a madrinha e lhes compra coisas.<br />

Mas o berço está aí, não o vendemos, como diz o bairro, já que o bairro fala.<br />

Valeria: o bairro fala?<br />

Marisa: sim.<br />

Valeria: mas você disse que eles não eram do bairro...<br />

Marisa: não, lá é assim: eles lhe dão uma coisa e andam dizendo besteiras por<br />

todos os cantos, eu sei como é que é. Você me diz que eu tenho que agradecer<br />

Silvia, mas ela esteve com a menina apenas uma semana e Marcela [da<br />

prefeitura] a tirou dela.<br />

Na perspectiva de Marisa, o “bairro” não só falava. Também controlava o que<br />

ela fazia ou deixava de fazer. Ela se defendia dessas falas, que entendia como<br />

acusações, negando a existência de ajuda, diminuindo a mesma, ou bem atribuindo<br />

ciúmes e inveja por seus filhos, ou pela sua maternidade. Mas o discurso de Marisa não<br />

parecia colar nem com Alicia e Valeria, nem sequer com a secretária da defensoria. Em<br />

várias ocasiões, ela levantava os olhos ou fazia com o dedo um sinal de “loucura”, em<br />

um gesto que parecia expressar a incongruência percebida quando Marisa falava. O que<br />

o “bairro falava”, “o que diziam”, “os vizinhos”, tinha ganho uma maior credibilidade<br />

nos ouvidos da Justiça, que, inclusive, ainda tinha outros depoimentos a serem ouvidos.<br />

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