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Baixar - Proppi - UFF

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A mudança de tom em Valeria parecia coincidir com uma atitude de menor<br />

confronto por parte dela. Admitir que podiam existir “conceitos de limpeza diferentes”<br />

pareceu-me ir nesse sentido. Afinal, não era comum, na minha experiência, agentes do<br />

Judiciário reconhecerem com facilidade, e além das posições defendidas por cada um<br />

deles no processo, a existência de ‘sensibilidades’ diversas. A intervenção da defensora<br />

parecia querer retomar, estrategicamente, essa diversidade de pontos de vista sobre “a<br />

limpeza”, ou sobre a “sujeira”, iniciada por Valeria. Contudo, rapidamente as perguntas<br />

voltaram a ser incisivas sobre os detalhes da forma de limpar –“com que limpa?”- e de<br />

avaliar tal atividade –“por isso me surpreende que esteja tão sujo”.<br />

O desenvolvimento da conversa, posterior àquela primeira consideração de<br />

Valeria, marcava o fato da mesma se dar em um contexto assimétrico. Esse contexto<br />

não fazia mais do que respeitar os papéis formais do processo penal: Valeria, como<br />

promotora, acusava; Carlos, como “imputado”, se defendia. Para tanto, acionava, ao<br />

longo do depoimento, uma série de figuras identitárias nas quais ele mesmo se<br />

inscrevia. Defendia-se como “bom pai”, como “trabalhador”, como “laborioso”, como<br />

“colaborador” no âmbito doméstico, em uma casa “pobre, mas linda”. A aceitabilidade<br />

que tais figuras teriam aos olhos e ouvidos de Valeria e Alicia pareciam limitadas por<br />

valores prévios, não só derivados das informações que “surgem do processo”, tal como<br />

disse Valeria, mas também de valores morais próprios. Esses valores, como disse, as<br />

aproximavam mais às versões dos vizinhos e do bairro do que à possível defesa de<br />

Carlos. Contudo, as figuras que Carlos trazia à tona nas suas descrições e avaliações<br />

mostravam seu esforço por se apresentar dentro de um padrão de sociabilidade familiar<br />

socialmente legitimado.<br />

Carlos: (...) O trato com as crianças é muito bom. Pode perguntar para Ariel ou<br />

Mauro [os outros filhos]. Se eles me pedem um asadito, fazemos, vamos ao<br />

parque, uma vida pobre, mas linda.<br />

Alicia: o senhor trabalha todos os dias? Qual horário?<br />

Carlos: de segunda a sábado, saía às 6h45 porque a feira abre às 8h e voltava às<br />

20h45.<br />

Alicia: nos domingos passava em casa?<br />

Carlos: sim, sim. Eu levava a factura 202 , ia fazer compra e depois comíamos<br />

como outra família qualquer e íamos ao parque.<br />

202 Trata-se de pães doces de diferentes sabores. Mantenho o termo em espanhol porque o significado de<br />

“eu compro a factura” ou “eu levo a factura” vai além do tipo de comida, implicando uma relação social<br />

de comensalidade em torno a essa ação, típica das manhãs ou tardes dos dias domingos e/ou sábados.<br />

Nessa relação social, espera-se um momento de conversa, em torno das facturas, acompanhadas<br />

idealmente por chimarrão [mate], onde se circulam e eventualmente compartilham valores e experiências<br />

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