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Baixar - Proppi - UFF

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econhecido que as testemunhas participavam e depunham desde interesses, valores e<br />

posições sociais e afetivas específicas.<br />

Diferentemente, aquele confronto em termos de “verdade” e “mentira” podia ser<br />

entendido, na minha percepção, como a forma com que o ‘saber judicial’ permitia<br />

desacreditar a versão do outro e estabelecer uma “verdade”. E era desse modo que se<br />

construíam ‘consensos parciais’: ‘parciais’ porque estavam baseados sobre certos<br />

aspectos do processo de investigação, descartando ou desvalorizando outros; e ‘parciais’<br />

também porque eram construídos entre certos grupos (“partes”), desacreditando outros.<br />

Poderíamos pensar, assim, que no “sistema” funcionava uma “verdade” que não era<br />

mais do que a articulação de ‘versões verossímeis’ 280 . A condição de verossimilhança<br />

de tais versões não dependia exclusivamente dos agentes judiciais e de suas percepções,<br />

mas era uma combinação da forma como essas percepções se articulavam com outros<br />

atores do processo, com suas percepções, moralidades e crenças 281 . Esses outros atores<br />

apareceram caracteristicamente representados no meu trabalho de campo com a<br />

categoria nativa de “bairro”.<br />

O “bairro”<br />

Ao longo desta tese, o “bairro” apareceu, com sentidos diversos, como uma<br />

categoria nativa na boca dos agentes e das pessoas envolvidas nos conflitos<br />

judicialmente tratados. Minha percepção foi que esta categoria articulava sentidos e<br />

identidades que orientavam as falas e a apresentação das pessoas no ambiente judicial,<br />

280 Antoine Garapon, na sua análise contrastiva entre o sistema anglo-americano e o francês, distingue<br />

entre as categorias de “verdade” e de “verossimilhança” como regimes de produção de prova<br />

diferenciados de cada sistema e das tradições das quais são tributários. A “busca da verdade” seria o<br />

objetivo próprio do sistema francês, da civil law; enquanto a condição de “verossimilhança” estaria<br />

associada ao sistema anglo-americano. Este forneceria as condições para que as partes expusessem suas<br />

próprias versões e fosse garantido o acordo, consenso ou negociação sobre a mais verossímil (2008:106).<br />

Nesse sentido, a condição de verossimilhança por ele identificada com o sistema da commom law pareceme<br />

diferente da noção aqui apresentada, segundo a qual essa condição não é resultado da negociação ou<br />

do consenso, mas do “convencimento” e da “crença” dos agentes.<br />

281 Na sua análise do xamanismo como um sistema simbólico, Claude Lévi-Strauss, a partir da história do<br />

o feiticeiro Quesalid, identifica três elementos que o compõem: a experiência do próprio xamã, a do<br />

doente e a do público (1985:207). Embora afirme que os três elementos são indissociáveis, Lévi-Strauss<br />

sugere que eles se organizam em dois pólos: a experiência íntima do xamã e o consenso coletivo. Essa<br />

perspectiva fundamenta sua famosa frase sobre o fato de Quesalid não ter se tornado um grande feiticeiro<br />

porque curava seus doentes, mas “ele curava seus doentes porque tinha se tornado um grande feiticeiro”<br />

(1985:208), afirmando assim o pólo coletivo do sistema. Pensando nas proposições desta tese, sem<br />

afirmar que o sistema judiciário como um todo goze de legitimidade social e consenso coletivo, pretendo<br />

sugerir que, como mostra o material empírico aqui descrito, existe a possibilidade do ‘saber judicial’ estar<br />

apoiado em valores e crenças coletivas que fazem parte da construção das decisões e, portanto, do<br />

funcionamento e reprodução do “sistema”.<br />

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