As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe
As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe
As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
conjunto tecnocientífico funciona como um entrelaçamento em que, mais do que determinação<br />
de uma esfera sobre as outras, há mútua constituição e emergência conjunta de normas,<br />
práticas, narrativas 101 .<br />
Embora possam ser entendidas como jogos cujas regras são estabelecidas com óbvia<br />
ligação a interesses econômicos, militares e assim por diante, as ciências também têm normas<br />
e racionalidades específicas que contribuem para estabelecer o espaço das configurações e das<br />
trajetórias sociotécnicas e econômicas possíveis: tanto um determinismo social estrito quanto<br />
o determinismo tecnológico são inadequados para entender os caminhos e as contingências<br />
históricas da <strong>tecnociência</strong> 102 . Uma vez que os axiomas e os algoritmos são postos em marcha,<br />
o andamento da produção de conhecimento pode levar a signos, funcionamentos, dinâmicas e<br />
produtos que não são meros automatismos, conseqüências inevitáveis e únicas da<br />
racionalidade que criou os axiomas e algoritmos. A máquina, uma vez ativada, pode<br />
surpreender seu criador 103 . Pode produzir enunciados e artefatos que estão em relação de<br />
congruência, coerência, cumplicidade, paralelismo com os enunciados e os valores do criador.<br />
Mas pode também tornar visíveis divergências e dissonâncias. Os<br />
101 Comentando sobre a centralidade da relação entre verdade e poder no caso específico do surgimento da prisão, do<br />
saber psiquiátrico e das práticas de internamento, Foucault escreve: “O internamento psiquiátrico, a normalização<br />
mental dos indivíduos, as instituições penais têm [...] uma importância muito limitada se se procura somente sua<br />
significação econômica. Em contrapartida, no funcionamento geral das engrenagens do poder, eles são sem dúvida<br />
essenciais” (Foucault, 2006: p. 6). Além disso, para Foucault, o desenvolvimento do capitalismo não é o que explica,<br />
mas o que também deve ser explicado. O capitalismo não determina, não dirige in toto os sistemas de poder, porque<br />
estes também, circularmente, estão à base de práticas e discursos determinantes para o próprio surgimento ou<br />
desenvolvimento do capitalismo: o regime de verdade moderno, escreve Foucault, “não é simplesmente ideológico ou<br />
superestrutural: foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. É ele que funciona, com algumas<br />
modificações, na maior parte dos países socialistas [...]. O problema político essencial [...] não é criticar os conteúdos<br />
ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia<br />
justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade” (ibidem: p. 14).<br />
102 Distancio-me do chamado “Programa Forte” da sociologia do conhecimento científico, da chamada “Escola de<br />
Edimburgo” bem como da “Escola de Bath” (Veja, por exemplo, Pickering, 2001: p 141 segs). Posições<br />
epistemológicas críticas tanto do determinismo tecnológico quanto do determinismo social foram expressas (mesmo<br />
que partindo de pressupostos diferentes e chegando a conclusões diversas) no contexto da ANT (Actor-Network<br />
Theory, Callon, 1987), bem como por Latour (1996). Thomas Hughes (1994), em sua teoria do “momento tecnológico”<br />
(technological momentum), mostra como os grandes sistemas técnicos são, em suas fases iniciais, profundamente<br />
moldados por interesses econômicos, negociações políticas, fatores culturais, debates sociais, mas, uma vez que<br />
crescem e cristalizam incorporando grande número de pessoas, instituições, aparatos físicos, adquirem uma “inércia”<br />
muito elevada, que os torna praticamente irreversíveis e dotados de capacidades não irrelevantes de influenciar outras<br />
trajetórias sociais e culturais.<br />
103 Podemos construir uma máquina para jogar xadrez. A máquina é feita, determinada por nós. <strong>As</strong> regras do jogo<br />
também. Mesmo assim, uma vez ligada a máquina, o andamento da partida não é mais determinado por nós. O<br />
programador não pode prever como a máquina jogará seu jogo. Aliás, a máquina pode jogar melhor que seus<br />
programadores. Em maio de 1997, Deep Blue, instalado numa máquina IBM, venceu o campeão do mundo de xadrez<br />
Garry Kasparov. Analogamente, há softwares que descobriram (e demonstraram) teoremas matemáticos ainda<br />
desconhecidos aos humanos, ou inventaram novas demonstrações para teoremas conhecidos (Castelfranchi e Stock,<br />
2002).<br />
102