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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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ecorrem à “ideologia”, os que se baseiam em “dados” e “fatos” daqueles que fazem<br />

afirmações “absurdas”, “esquizofrênicas”, “sensacionalistas”. São procedimentos que também<br />

entram em ação para distinguir pessoas, países, regiões que seriam vítimas de um déficit 194 ,<br />

um gap, um descompasso no desenvolvimento tecnocientífico ou no “nível cultural”.<br />

A argumentação de que as pessoas são “cientificamente analfabetas” permite ao<br />

mesmo tempo financiar programas de educação e divulgação e, na espera de um futuro de<br />

Luzes que nunca chega, despolitizar e delegar a tomada de decisões para âmbitos técnicos 195 .<br />

A imagem do descompasso, do gap permite replicar o refrão do “bonde que não podemos<br />

perder”, o que também tem o efeito de neutralizar o debate sobre <strong>tecnociência</strong>, automatizando<br />

programas de “aceleração do crescimento”. Quando o bonde não pode ser perdido, e quando<br />

vale a regra de que “se nós não fizermos” (a comercialização rápida de OGMs, o aumento de<br />

produtividade por meio de uma qualquer tecnologia X), “alguém fará”, o resultado é,<br />

usualmente, a rápida sucessão de acelerações depois das quais estamos tão obsoletos quanto<br />

antes, numa reformulação do paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, onde Aquiles é o esforçado e<br />

tenaz país emergente correndo para alcançar um Primeiro Mundo que, plácido como<br />

Tartaruga, não precisa fazer muito para ganhar a corrida.<br />

Vejamos então, de perto, o funcionamento de tais processos discursivos: a rejeição do<br />

discurso incompetente, do discurso irracional, do discurso “falso”.<br />

3.13.1 Calem-se os ignorantes, deixem a ciência falar<br />

No discurso tecnocientífico predominante costuma haver uma peculiar retórica double bind 196 .<br />

A ciência aparece como conjunto de saberes (e método para a produção de saberes)<br />

194 Para uma breve síntese crítica sobre o chamado “modelo de déficit”, veja por exemplo Castelfranchi (2007);<br />

Castelfranchi e Pitrelli (2007: p. 45-49); Kanashiro e Evangelista (2004).<br />

195 Na área da divulgação da ciência, é conhecido o caso do movimento para a “compreensão pública da ciência”<br />

(Public Understanding of Science, PUS), que, com slogans do tipo “Ciência para todos”, dominou o panorama (e os<br />

financiamentos) na Europa e América do Norte ao longo das décadas de 1980 e 1990, para finalmente descobrir que<br />

precisava, no mínimo, mudar de retórica e de nome, invocando não tanto a alfabetização e inoculação de informação<br />

científica nas cabeças das pessoas, quanto um engajamento e participação ativa do público. Hoje, os recursos são dados<br />

a projetos que ao acrônimo “PUS” preferem o “PEST” (Public Engagement in Science and Technology) e que afirmam<br />

a necessidade de um diálogo, de uma participação “de baixo para cima” (upstream engagement). Os detalhes desta<br />

reformulação da comunicação pública da ciência são tratados no próximo capítulo. Veja também Castelfranchi e Pitrelli<br />

(2007), cap. 2 e 3.<br />

196 Double bind (“duplo vínculo”) é um conceito cunhado por Gregory Bateson na tentativa de buscar fatores<br />

ambientais e familiares, não genéticos, ligados à insurgência da esquizofrenia. É a situação em que uma pessoa recebe<br />

duas mensagens implicitamente contraditórias sobre o que pode ou deve fazer. Imaginemos uma criança que chegue<br />

correndo para mãe, para mostrar o sapinho que apanhou no mato. “Que bonitinho, filho!”, diz a mãe tentando disfarçar<br />

o nojo. E logo em seguida: “Agora jogue fora, e corra lavar suas mãos!”. A criança perceberá uma situação de double<br />

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