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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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No caso de temas tecnocientíficos nevrálgicos, que levantam dúvidas, preocupações, debates<br />

sociais, esta exclusividade do sujeito legitimado a falar funda-se na argumentação de que, por<br />

causa da complexidade da questão e do gap, do déficit das pessoas “comuns”, do<br />

descompasso que separa os que sabem dos que não sabem (o “analfabetismo científico”), não<br />

há como todos opinarem. Alguns não deveriam falar, não poderiam intrometer-se: há assuntos<br />

que os cientistas, os economistas ou, mais em geral, os “experts” deveriam discutir entre eles,<br />

e depois compartilhar as conclusões com a sociedade 197 . Não é apenas o intricado<br />

funcionamento, digamos, dos anticorpos monoclonais, que deve ser discutido entre<br />

especialistas, mas até as questões de ética. É justo pagar uma mulher para submeter-se à<br />

injeção de hormônios que causam superovulação, tirar seus óvulos, fecundá-los artificialmente<br />

e utilizá-los para experimentos sobre clonagem humana? Somente especialistas podem<br />

entender e opinar sobre isso. Ou, ainda: condenar publicamente um cientista como o coreano<br />

Woo-Suk Hwang (isto é, divulgar na mídia o fato de que foi acusado de fraude por seus pares<br />

e que os colegas pediram para retirar sua assinatura de artigos publicados com ele) pode ser,<br />

na opinião de alguns cientistas, prejudicial “para a ciência”. A ciência, neutra, impessoal,<br />

universal, desinteressada, independente da política, pode “perder” ou “ganhar” com discussões<br />

éticas. Melhor regulamentar e limitar o acesso ao debate: fale quem sabe, calem-se os outros<br />

(Quadro 9). No entanto, em muitos casos, a interdição não opera sozinha. Às vezes, não é fácil<br />

desqualificar um ator como sendo incompetente e ignorante. Outros procedimentos de<br />

exclusão entram então em jogo, como a oposição descrita por Foucault entre razão e loucura,<br />

197 No corpus que analisei, encontrei dúzia de exemplos. No entanto, além de documentos ou de falas públicas, a<br />

atividade profissional como jornalista científico e ambiental fornece inúmeros exemplos, off the records e anedóticos,<br />

mas significativos, do mapa das falas proibidas, excluídas, execradas. Qualquer jornalista se depara com ameaças<br />

explícitas ou censuras implícitas. Quando trabalhava como pesquisador de um importante instituto de pesquisa<br />

internacional e, ao mesmo tempo, como jornalista free-lance, o diretor do instituto, em privado, fez questão de explicarme<br />

que havia coisas, na genética, que “podiam até ser verdadeiras”, mas não por isso deviam ser publicamente<br />

discutidas. “São coisas” – disse referindo-se a uma minha reportagem sobre as falácias do reducionismo genético –<br />

“que os biólogos devem discutir entre eles, na pausa para o café”. Trabalhando na produção de um CD-ROM didático<br />

sobre biologia molecular e biotecnologia, escrevi um hiper-texto junto a um pesquisador do International Center for<br />

Genetic Engineering and Biotechnology, órgão da ONU. No momento de explicar como funcionam enzimas e síntese<br />

protéica, código genético e tripletos, a relação com o cientista era ótima. Quando expressei a necessidade,<br />

imprescindível para um material didático, de situar também o debate social sobre biotecnologia, o conflito foi evidente.<br />

Para o biotecnólogo era “absurdo” e “injusto” colocar, lado a lado com a divulgação científica, as opiniões de pessoas<br />

de “má fé”, ou que “não entendiam nada” do assunto. Nenhuma instituição contrária à liberação comercial de<br />

transgênicos devia, na opinião do pesquisador, ser mencionada, nem deviam ser colocadas as polêmicas sobre riscos à<br />

saúde, impacto ambiental, patentes e preocupações de caráter social.<br />

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