10.06.2013 Views

As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

A <strong>tecnociência</strong> possui, de certa forma, um discurso “de soberania”. É seu discurso<br />

menos sofisticado, em que o Progresso (entendido não apenas como avanço científico, mas<br />

também como aceleração da economia e penetração capilar da tecnologia em todos os espaços<br />

vitais) é obrigatório e inexorável porque conectado às Leis de Natureza (e, às vezes, até<br />

mesmo àquelas do “Mercado”) que são invioláveis e independentes da ação humana. Nos<br />

subterrâneos da igreja de S. Clemente, entre as ruas da Roma Imperial, o Mitraeum mostra a<br />

casa de um deus poderoso, inacessível, não afetado pelas dores e as lutas dos homens...<br />

Mas a <strong>tecnociência</strong> também sabe pronunciar um discurso “de disciplina”, em que o<br />

Progresso é “certo”, “justo”, inevitável, universalmente positivo, dotado de uma marcha<br />

imanente. Neste discurso, a <strong>tecnociência</strong> não é obrigatória, mas, sim, necessária: ela educa,<br />

divulga, ilumina, explica. Na igreja inferior, os afrescos da vida de S. Clemente narram de um<br />

deus que ama e sofre com os homens; contam a história da necessidade do arrependimento e<br />

da graça, da possibilidade de acesso a uma vida superior, da possibilidade de uma iluminação.<br />

Existem mediadores entre o Céu e a Terra...<br />

Junto com esses, a <strong>tecnociência</strong> fala hoje um discurso “de controle”, em que a tomada<br />

de decisões importantes passa pelo cálculo, mas também pela “participação cidadã” (mesmo<br />

que, freqüentemente, apenas como fachada, como num palco de teatro) e pela incorporação<br />

semi-automática de inputs fornecidos pela população, por seus movimentos, por seus rastros e<br />

dados “dividuais” (veja Cap. 2). Surgem os comitês de bioética e os museus interativos, as<br />

comissões alargadas à “sociedade civil” e as consultas com a “população local”, as<br />

“conferências de consenso” e os orçamentos participativos, a e-democracy, os videogames<br />

educativos. Na basílica, chega o Renascimento. Traz consigo a nova perspectiva, as linhas de<br />

fuga dos matemáticos, a nova estética dos poetas que escrevem em vulgar, a nova retórica da<br />

vida urbana. A teologia cria o Purgatório: mais um espaço de mediação e escuta. Mais um<br />

lugar onde o futuro está em jogo (Rabinow, 1999) 207 .<br />

207 Talvez o aviso seja desnecessário, mas merece uma nota: obviamente, estes paralelos entre S. Clemente e a<br />

<strong>tecnociência</strong> devem ser tomados cum grano salis. São um divertissment, ou imagens para dizer, com Foucault, que a<br />

gênese dos enunciados numa formação discursiva pode ser complexa, estratificada, heterogênea. E que, na ordem do<br />

discurso, enunciados contraditórios podem funcionar de maneira conjunta, pertencer à mesma epistémê. Foucault<br />

distingue a doxologia (reconstituir o jogo das opiniões nas lutas de poder e interesse) da arqueologia e da genealogia,<br />

em que são examinadas as condições a partir das quais é possível pensar em formas coerentes e simultâneas saberes<br />

aparentemente opostos (por ex., fixismo e evolucionismo na história natural). Veja, por ex., Billouet, 2003: p. 69. Na<br />

<strong>tecnociência</strong> neoliberal, foram recombinados estratos renascentistas, iluministas, positivistas e neoliberais, que<br />

funcionam interagindo de forma complexa.<br />

222

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!