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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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A solidez e permanência dos fatos residem na ausência de agência humana em sua aparição.<br />

Os agentes humanos produzem teorias e interpretações, mas os fatos é que são o “espelho da<br />

natureza” (Shapin & Schaffer, 2005: p. 54). O que a natureza faz, nenhum homem pode<br />

disputá-lo.<br />

<strong>As</strong> argumentações podem ser falsas ou verdadeiras, uma teoria pode ser “boa” ou<br />

“má”, mas os fatos são fatos: podem ser<br />

testemunhados, conferidos, validados por<br />

qualquer um. No “jogo de linguagem empirista”<br />

– como o chamam Shapin e Schaffer – é central<br />

a multiplicação, ao menos em princípio, das experiências testemunhais: “uma experiência de<br />

que só um homem dava testemunha […] não constituía um fato adequado. Se a experiência<br />

podia ser estendida a vários, e em princípio a todos os homens, então o resultado podia<br />

constituir-se num fato” (Shapin e Schaffer, 2005: p. 56-57, trad. minha) 177 .<br />

Por isso, uma arma poderosa quando se quer legitimar uma determinada afirmação (por<br />

exemplo, sobre a neutralidade da técnica, ou sobre a positividade e inevitabilidade da<br />

economia de mercado) consiste em afirmar que está “fundamentada em fatos”: é uma maneira<br />

eficaz para invisibilizar os processos sociais e as agências políticas que participam do<br />

discurso, uma maneira de garantir credibilidade a um enunciado, de afastá-lo das guerras, de<br />

etiquetá-lo como neutral, externo ao poder, não sujeito à polarização das disputas humanas.<br />

A separação entre fatos e ideologias (Par. 3.13.2 abaixo) é central no funcionamento<br />

discursivo da <strong>tecnociência</strong> contemporânea. Para Foucault, saber e poder são tramados juntos: o<br />

poder não impede a verdade, ao contrário, contribui para sua constituição. “<strong>As</strong> condições<br />

políticas, econômicas de existência”, diz o filósofo (Foucault, 1996, VFJ: p. 27), “não são um<br />

177 Foucault (1996, VFJ: p.; 76 segs.) acrescenta considerações importantes sobre a gênese do regime de verdade<br />

empirista e sobre o novo papel das testemunhas. Para ele, a crise da universidade medieval no fim da Idade Média pode<br />

ser analisada também em temos de oposição entre “inquérito” e “prova”. Na universidade medieval, um dos rituais para<br />

manifestar e autenticar o saber era a disputatio, a disputa, que obedece ao esquema geral da “prova”: “Tratava-se do<br />

afrontamento de dois adversários que utilizavam a arma verbal, os processos retóricos e demonstrações baseadas<br />

essencialmente no apelo à autoridade. Apelava-se não para testemunhas de verdade, mas para testemunhas de força. Na<br />

disputatio, quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse invocar testemunhos de<br />

autoridade [...], maior possibilidade ele teria de sair vencedor”. O saber – medieval, mas sobretudo renascentista – que<br />

vai se chocar com o saber universitário é, ao contrário, “do tipo do inquérito”: “Ter visto, ter lido os textos; saber o que<br />

efetivamente foi dito; [...] verificar o que os autores disseram pela constatação da natureza; utilizar os autores não<br />

mais como autoridade mas como testemunho; tudo isso vai constituir uma das grandes revoluções na forma de<br />

transmissão do saber. O desaparecimento da Alquimia e da disputatio [...] são alguns dos numerosos sinais [...] do<br />

triunfo do inquérito sobre a prova, no fim da Idade Média [...]. O inquérito não é absolutamente um conteúdo, mas a<br />

forma de saber [...]. É uma forma política [...] de exercício do poder que [...] veio a ser uma maneira, na cultura<br />

ocidental, de autentificar a verdade [...] O inquérito é uma forma de saber-poder” (grifos meus).<br />

184<br />

“Por perfeita que a asa de uma ave possa ser, nunca<br />

poderá permitir que a ave voe, se não for suportada<br />

pelo ar. Os fatos são o ar da ciência. Sem eles um<br />

homem de ciência nunca pode se erguer.”<br />

Ivan Pavlov

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