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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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independentes” para participar do debate e produzir dados. Eram médicos, geólogos,<br />

engenheiros, economistas. Foram coletados números e fatos, em alguns casos vindo de<br />

pesquisas diretamente encomendadas pelo comitê contra a estrada de ferro, e disponibilizados<br />

na Internet 285 em forma de dossiês sobre os perigos do amianto e dos túneis nos Alpes, sobre<br />

os conflitos de interesses dos políticos envolvidos no projeto, sobre a presença de urânio na<br />

região, as conseqüências econômicas da obra, e assim por diante. Tratava-se não apenas da<br />

contribuição, bem estudada, de “saberes leigos” (lay-knowledge, Wynne, 1996) ou “indígenas”<br />

ao conhecimento científico, mas de uma produção estimulada de baixo para cima de<br />

conhecimento científico e de saberes especialistas.<br />

A linha ferroviária, defenderam os ativistas, devia ser anulada não somente porque era<br />

ilegítima e prejudicial, mas porque era ineficiente e inútil. Os grupos de pressão não opuseram<br />

à governamentalidade neoliberal uma lógica de justiça ou de valores, mas um cálculo de riscos<br />

e benefícios. Decidiram entrar na arena da <strong>tecnociência</strong>, usar enunciados que estão “no<br />

verdadeiro” 286 , que pertencem à ordem discursiva e às regras do jogo da própria<br />

governamentalidade. Jogaram a governamentalidade contra a governamentalidade, usando<br />

efeitos de verdades contra outros efeitos de verdade. Contra os dados e as afirmações dos<br />

especialistas, utilizaram dados e afirmações de outros especialistas 287 . A TAV, descrita como<br />

obra estratégica para o desenvolvimento econômico da União Européia, ficou parada por causa<br />

da mobilização de relativamente poucas pessoas que conseguiram causar um debate social<br />

ampliado, antes no Parlamento Italiano e depois no Parlamento Europeu (Castelfranchi e<br />

Sturloni, 2006).<br />

Em 2003, também na Itália (em Scanzano Jônica, cidadezinha no sul do país), um caso<br />

285 Uma lista de documentos e artigos está disponível (em italiano) em:<br />

http://www.spintadalbass.org/documenti.htm. Material técnico e dados científicos ainda estão disponíveis em:<br />

http://www.notavtorino.org/documenti/ne-urgente-ne-necessaria.htm e http://www.notav.eu/downloads-cat4.html.<br />

Acesso em março de 2008<br />

286 “Estar no verdadeiro”, no sentido que já foi dado à expressão por Canguilhem e que Foucault reformula, por<br />

exemplo, em sua Ordem do discurso (Foucault, 1996, OD): “Dizer o verdadeiro” e “estar no verdadeiro” não são a<br />

mesma coisa. Uma afirmação pode ser considerada científica, e portanto ser julgada, avaliada como sendo verdadeira<br />

ou falsa, apenas se ela “está no verdadeiro”, isto é, se sua formulação e estrutura obedecem às regras do jogo discursivo<br />

da ciência. Diz Foucault (1996, OD: p. 32-34): “No interior dos seus limites, cada disciplina reconhece proposições<br />

verdadeiras e falsas; mas repele para o outro lado das suas margens toda uma teratologia do saber. [...] Numa palavra,<br />

uma proposição tem de passar por complexas e pesadas exigências para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina;<br />

antes de se poder dizê-la verdadeira ou falsa, ela deve estar, como diria Canguilhem, ‘no verdadeiro’.”<br />

287 O movimento “No-TAV” (“não aos trens-bala”) recusou a oferta de “compensação econômica”, de quase um bilhão<br />

de euros, proposta pelo governo italiano. E argumentou que não existia nenhuma razão, técnica, científica, econômica<br />

“para fazer uma obra de 20 bilhões de euros, talvez 30, perfurando montanhas” e que, ao que parecia “a única razão<br />

estava nas contas correntes das empresas que devem fazer as obras e de seus protetores políticos”.<br />

Veja: http://www.beppegrillo.it/2007/07/linsostenibile_1.html. Tradução minha. Acesso em março de 2008.<br />

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