10.06.2013 Views

As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

único possível. Não é o único que historicamente se deu. Não é, sobretudo, algo que era<br />

inevitável, automático na lógica da valorização do valor, no método científico de Galileu e<br />

Newton, no funcionamento das tecnologias da informação ou em alguma outra invenção da<br />

modernidade. A <strong>tecnociência</strong>, tal como a conhecemos, é o acontecimento que marca nossa<br />

atualidade, mas que não estava inscrito no destino da modernidade.<br />

Para Foucault, um evento, ou acontecimento (événement) 129 é a irrupção de uma<br />

singularidade (Foucault, 2005, AS: p. 218 segs; Cardoso, 1995: p. 54 segs). É algo que<br />

comparece na cena sem ser necessário, inevitável, previsível, algo cuja emergência não é<br />

redutível a um determinado contexto histórico-social. O acontecimento é único e agudo, uma<br />

ruptura no tecido. Acontecimento não é uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha,<br />

mas “uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e<br />

voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e<br />

uma outra que faz sua entrada, mascarada” (Foucault, 2006, MP: p. 28). O acontecimento<br />

remete “para o horizonte [...] da novidade absoluta” (Zagato, 2007: p. 86) 130 .<br />

No entanto, minha escolha de tratar a <strong>tecnociência</strong> como um acontecimento na gênese<br />

da atualidade não vai certamente na direção de fugir de uma explicação causal, de desistir da<br />

busca de raízes históricas, do mapeamento de fatores que contribuem para constituir o<br />

complexo dispositivo tecnocientífico 131 . Ao contrário, pretendo restituir à <strong>tecnociência</strong> seu<br />

peso, sua centralidade como objeto de pensamento, em suas especificidades, suas<br />

129 Foucault usa o termo événement. Em português, a palavra foi traduzida mais freqüentemente como acontecimento,<br />

fato que pode causar pequenas confusões. Por exemplo, quando Marshall Sahlins (1985: p. 153) fala da diferença entre<br />

acontecimento (happening) e evento (event), o que ele indica com happening não tem a ver com o acontecimento<br />

foucaultiano.<br />

130 Não surpreende que – junto com a centralidade do discurso, com a análise genealógica, microfísica, ascendente do<br />

poder, com a crítica da verdade – a concepção de acontecimento tenha levado comentadores a tachar o pensamento<br />

foucaultiano de idealista e irracionalista. Em alguns momentos, de fato Foucault parece deixar entender uma concepção<br />

da mutação histórica como sendo ligada a fatores casuais e inexplicáveis. Comentando a genealogia da moral<br />

nietzschiana, por exemplo, Foucault escrevia: “<strong>As</strong> forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a<br />

uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. [...] Elas aparecem sempre na álea singular do<br />

acontecimento [...] O verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas<br />

originárias, em miríades de acontecimentos perdidos. (Foucault, 2006, MP: p. 28). No entanto, na mesma passagem, o<br />

filósofo enfatizava que é preciso compreender este acaso “não como um simples sorteio”, mas como “o risco sempre<br />

renovado da vontade de potência que a todo surgimento do acaso opõe, para controlá-lo, o risco de um acaso ainda<br />

maior”.<br />

131 Já quando escreve Arqueologia do Saber, Foucault está consciente da centralidade do acontecimento não para<br />

desistir da explicação histórica, mas para não “imobilizar a história”, para restituir à análise do discurso a possibilidade<br />

de lidar com a mudança e as transformações (Foucault, AS, 2005: p. 218). A arqueologia, diz Foucault, não nega a<br />

possibilidade de novos enunciados em correlação com acontecimentos externos. Sua tarefa é a de mostrar quais são as<br />

condições para que tal correlação possa realizar-se, e em que consiste (Ibidem, p. 220). Não se trata, em suma, de<br />

eliminar a causa do palco da história e substituí-la com a multiplicidade do acaso, mas de buscar condições e relações<br />

que a tornem inteligível.<br />

127

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!