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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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Estava estudando cosmologia quântica, em 1994, quando voltei a explorar a basílica de<br />

S. Clemente com Carlo. Excelente físico experimental, apaixonado por poesia e artes<br />

figurativas, erudito conhecedor de Roma, Carlo era um guia especial. Conhecia cada esquina<br />

de Roma antiga e a história de cada obra de arte. Sabia enxergar na minúscula escultura de um<br />

sapo ou de um lagarto escondida numa coluna de mármore a assinatura secreta de um artista<br />

escravo da época imperial. Sabia aproveitar os túneis do metrô de Roma para alcançar acessos<br />

abandonados a templos romanos subterrâneos.<br />

Carlo conhecia cada mosaico, corredor, lápide, afresco de S. Clemente; podia ler seus<br />

inúmeros signos e suas multíplices reinvenções. Ajudava como garçom num restaurante da<br />

família, na frente da porta lateral de S. Clemente. Perfeitos bucatini all’amatriciana e um<br />

bom, robusto vinho tinto dos Castelli Romani deixavam alegres e loquazes os arqueólogos<br />

alemães que na época escavavam uma parte ainda inexplorada da igreja inferior (contendo o<br />

que parecia ser um batistério medieval). Após o almoço, revelavam ao garçom curioso<br />

pequenos segredos.<br />

Para mim, S. Clemente era ar e luz. Os mosaicos, a entrada com o pórtico, a fonte para<br />

os catecúmenos, os mármores, o piso cosmatesco e seus jogos geométricos, o estilo bizantino,<br />

o renascentista, o páleo-cristão, a vertigem das escadas descendo no tempo… Eu via na<br />

basílica não somente algo belíssimo. Sentia algo potente. Uma potência estranha que na época<br />

não conseguia entender, mas da qual precisava para olhar caminhos distantes daqueles da<br />

física teórica. Precisava escapar das funções de onda ψ, dos vetores em espaços de Hilbert de<br />

dimensão infinita, da topologia e dos tensores de Riemann para pisar em chãos de pedra, sentir<br />

carne e corpos. Minha dissertação, sobre “estrelas de sólitons não-topológicos” me<br />

emocionava, me apaixonava. Com um método de Runge-Kutta de segunda ordem, convencia<br />

um grande computador a calcular para mim os destinos possíveis de estranhos, hipotéticos<br />

coágulos quânticos que podiam estar no céu, invisíveis como estrelas sem luz, feitas de uma<br />

matéria desconhecida na Terra. Mas havia algo estranho. Duas sensações, nítidas, ambas<br />

incômodas, me perseguiam. A primeira: que nós, na física, tentávamos fazer certas coisas mas<br />

nossas ações acabavam resultando em outras. A segunda: que estávamos sempre um passo<br />

atrás, um segundo atrasados, nunca bons o bastante, precisando nos tornar mais potentes, mais<br />

eficientes, mais rápidos. Esperávamos com ansiedade os feriados, para poder estudar mais,<br />

trabalhar mais. A física, dizíamos, é aquela coisa que os físicos fazem nas madrugadas. Entre<br />

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