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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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dos cientistas contra o governo, que estava cortando os recursos para pesquisa científica. Os<br />

mesmos biólogos que haviam rejeitado o discurso dela como não válido, agora se juntaram na<br />

luta “em defesa da liberdade de investigação e para o progresso da ciência”.<br />

“Esquizofrenia” e “irracionalidade” implicam, obviamente, num valor nulo ou quase nulo dos<br />

enunciados proferidos. Latour, em sua irreverente abordagem, descreve assim a natureza das<br />

forças que desviam o racional rumo ao irracional:<br />

Aos olhos dos cientistas, a verdadeira pergunta [...] é [...]: como podem existir ainda<br />

pessoas que acreditam numa série de absurdidades [...]? Um astrônomo poderia<br />

perguntar-se: ‘Por que os Americanos [...] continuam acreditando nos discos voadores<br />

mesmo sendo claro que não existem? [...] Em todos estes exemplos, se presume<br />

implicitamente que as pessoas devem ir numa direção, a única razoável, mas que<br />

desafortunadamente são desviadas por algo. E que é esse algo que devemos explicar.<br />

A linha reta que as pessoas deveriam ter seguido é chamada racional; enquanto a<br />

linha curva, aquela que infelizmente foram induzidas a seguir, é a linha irracional. É a<br />

primeira vez que utilizamos estes adjetivos [...]. Eles comparecem somente quando os<br />

cientistas fazem hipóteses sobre a razão de ser dos não-cientistas. [...] O que<br />

precisamos para seguir a linha reta é apenas uma mente e um método rigorosos. O<br />

que, vice-versa, é necessário para explicar o percurso torto seguido pelos ‘crentes’<br />

nos fenômenos bizarros? [...] Numerosos fatores que podem ser escolhidos num longo<br />

elenco que inclui ‘cultura’, ‘raça’, ‘anomalias cerebrais’, ‘fenômenos psicológicos’ e,<br />

naturalmente, ‘fatores sociais’. [...] O único aspecto consolador [...] é que, se fosse<br />

possível eliminar os fatores que acorrentam as pessoas a seus preconceitos, cada um<br />

se tornaria [...] rigoroso como os cientistas [...] (Latour, 1998: p. 248-249; trad.<br />

minha) 200 .<br />

Em determinados casos, porém, os mecanismos de interdição do discurso ou a rotulagem de<br />

“loucura” não são possíveis, por exemplo, porque os atores envolvidos em enunciados<br />

incômodos pertencem ao “núcleo duro” daqueles habilitados à palavra racional (cientistas e<br />

experts, eventualmente no pleno de sua juventude e de suas faculdades mentais). É impossível<br />

liquidar os livros de Richard Lewontin e Stephen Jay Gould contra o determinismo genético e<br />

alguém que “se declarasse de esquerda sem nunca ter lido uma linha de Marx ou Engels” – me disse – podia ser tão<br />

superficial de não ver que “ser contra os transgênicos é ser de direita”.<br />

200 Para mostrar em ação a atribuição de “racionalidade”, Latour constrói um divertido Gedankenexperiment em que as<br />

interpretações de um antropólogo inglês entre os Azande são comparadas com interpretações de um “antropólogo<br />

Azande entre os Ingleses” (Latour, 1998: p. 249-264).<br />

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