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As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e ... - CTeMe

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indivíduo racional para um único comportamento pré-fixado parece não apenas injusto ou<br />

ilegítimo, mas, sobretudo, estúpido e ineficiente 118 .<br />

2.3 O “lugar da verdade” na governamentalidade liberal<br />

Na razão de Estado, o poder do soberano era limitado externamente pelo direito 119 . No século<br />

XVIII, com a economia política, aparece um princípio de regulação interna da racionalidade<br />

governamental, uma limitação intrínseca do governo (Foucault, NB, p. 10-12). No momento<br />

em que a economia política se estabelece como uma ciência, questiona não tanto a<br />

legitimidade ou a justiça da prática de governo, mas sua eficácia: o critério para reconhecer<br />

um bom governo se baseia não apenas na coerência com as leis divinas e o contrato dos<br />

homens, mas num regime de verdade 120 . A veridicção 121 ou falsificação das práticas<br />

governamentais se dá pelo teste “experimental” feito no mercado. O teste da prática<br />

governamental está na eficiência em governar para o mercado. A legitimidade, diz Foucault,<br />

é substituída pelo sucesso.<br />

Com o liberalismo, ao longo do século XVIII, o mercado deixa de ser visto apenas<br />

118 Naturalmente, Foucault não é o único a ressaltar tais elementos, mas os coloca na moldura das economias de poder e<br />

do conceito de governamentalidade. De fato, muitos autores ressaltaram no pensamento seiscentista e iluminista<br />

elementos parecidos, tais como o discurso da autolimitação do poder soberano, da imanência das dinâmicas da<br />

população, da regulação das coisas num contexto de fluxos, de probabilidade e aleatoriedade. Mesmo um entusiasmado<br />

defensor do Iluminismo e severo crítico da filosofia de Foucault, que denomina de “mistificação intelectual”,<br />

“niilismo” e “paradigma irracionalista” (Casini, 1994: p. 11-12), observa alguns destes elementos. Por exemplo quando,<br />

citando Maquiavel e seus críticos (como faz Foucault), ressalta que, em Montesquieu, a arte de governo é probabilística<br />

e ligada à imanência das coisas, porque “a maioria dos efeitos [...] depende de causas tão imperceptíveis e remotas, que<br />

não podemos prevê-las”. Montesquieu afirmaria assim “a idéia de uma legalidade universal imanente, tanto na natureza<br />

como na sociedade”, porque “a natureza das coisas baseia-se em relações necessárias” (Casini, 1994: p. 45-46). Casini<br />

(1994: p. 73-74) nota também que o processo de unificação dos Estados-nação, no século XVII, induzira os<br />

economistas a discutir “os problemas do comércio internacional do ponto de vista da intervenção estatal, das limitações<br />

e da acumulação de moeda”, enquanto, sucessivamente, “o crescimento da produção industrial e o progresso técnico<br />

deslocaram a atenção sobre os problemas do capital, do trabalho assalariado e da liberalização dos mercados”. Ainda<br />

ressalta que a compreensão das leis da natureza foi entendida, pela maioria dos iluministas, não mais como uma dádiva<br />

da divina providência, mas como uma tarefa da razão humana, a ser encarada não “à luz plena da revelação” mas, como<br />

dizia Locke, “no crepúsculo das probabilidades”. (Casini, 1994: p. 38)<br />

119 E a teoria do direito (vindo já dos direitos reivindicados, na Idade Média, pela nobreza contra o soberano) tomava a<br />

forma ora de uma teoria dos direitos naturais, ora do contrato social, fazendo com que o poder do soberano estivesse<br />

longe de ser absoluto (Foucault, NB, p. 9-10).<br />

120 Em Microfísica do Poder encontramos uma definição do conceito de regime de verdade: “Cada sociedade tem seu<br />

regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como<br />

verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como<br />

se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto<br />

daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. (Foucault, 2006, MP: p. 12).<br />

121 Não existe um termo “oficial”, em dicionário de língua portuguesa, para traduzir esta expressão de Foucault. Entre<br />

as grafias “veridição” e “veridicção”, escolhi a segunda, utilizada, por exemplo, em Giannotti (2006).<br />

117

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