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A história da loucura na idade clássica

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Assiste-se nessa época ao grande confisco <strong>da</strong> ética sexual<br />

através <strong>da</strong> moral <strong>da</strong> família. Confisco que não se faz sem debates ou<br />

reticências. Durante muito tempo o movimento "precioso" opôs-lhe<br />

uma recusa cuja importância moral foi considerável, ain<strong>da</strong> que seu<br />

efeito tenha sido precário e passageiro: o esforço por despertar os<br />

ritos do amor cortês mantendo sua integri<strong>da</strong>de para além <strong>da</strong>s<br />

obrigações do casamento, a tentativa de estabelecer ao nível dos<br />

sentimentos uma soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e como que uma cumplici<strong>da</strong>de sempre<br />

prestes a prevalecer sobre as ligações de família deviam fi<strong>na</strong>lmente<br />

fracassar diante do triunfo <strong>da</strong> moral burguesa. O amor dessacralizase<br />

através do contrato. Saint-Évremond sabe muito bem disso,<br />

quando zomba <strong>da</strong>s "preciosas" para as quais “o amor ain<strong>da</strong> é deus...”<br />

ele não suscita mais nenhuma paixão em suas almas; constitui,<br />

antes, uma espécie de religião" 27 . Logo desaparece essa inquietação<br />

ética que tinha sido comum ao espírito cortês e ao espírito "precioso",<br />

e à qual Molière responde, por sua classe e pelos séculos futuros: "O<br />

casamento é uma coisa santa e sagra<strong>da</strong>, e é próprio <strong>da</strong>s pessoas<br />

honestas começar por esse ponto". Não é mais o amor que é<br />

sagrado, mas ape<strong>na</strong>s o casamento, e diante do tabelião: "Fazer amor<br />

só com o contrato de casamento" 28 . A instituição familiar traça o<br />

círculo de sua razão: para além dele surgem como ameaça todos os<br />

perigos do desatino; lá o homem se entrega à insani<strong>da</strong>de e a todos<br />

seus furores.<br />

Infeliz a terra de onde saem continuamente uma fumaça tão espessa, vapores<br />

tão negros que se elevam dessas paixões tenebrosas, e que nos ocultam o<br />

céu e a luz; de onde partem também os clarões e os relâmpagos <strong>da</strong> justiça<br />

divi<strong>na</strong> contra a corrupção do gênero humano 29 .<br />

As velhas formas do amor ocidental são substituí<strong>da</strong>s por uma<br />

nova sensibili<strong>da</strong>de: a que <strong>na</strong>sce <strong>da</strong> família e <strong>na</strong> família; ela exclui,<br />

como pertencendo à ordem do desatino, tudo aquilo que não é<br />

conforme à sua ordem ou ao seu interesse. Já podemos ouvir as<br />

ameaças de Mme. Jour<strong>da</strong>in: "Sois um louco, senhor meu marido, com<br />

to<strong>da</strong>s vossas fantasias". E mais adiante: "São meus direitos que<br />

estou defendendo, e terei a meu lado to<strong>da</strong>s as mulheres"30. Essas<br />

declarações não são vãs; a promessa feita será manti<strong>da</strong>: um dia a<br />

27 SAINT-ÉVREMOND, Le Cercle, in Oeuvres, 1753, II, p. 86.<br />

28 Les précieuses ridicules, ce<strong>na</strong> V.<br />

29<br />

BOSSUET, Traité de la concupiscente, Cap. IV (textos escolhidos por H.<br />

BREMOND, III, p. 180).<br />

30<br />

Le Bourgeois gentilhomme, ato III, ce<strong>na</strong> III, e ato IV, ce<strong>na</strong> IV.<br />

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