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A história da loucura na idade clássica

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que se considerava Netuno 105 . É o destino ridículo <strong>da</strong>s Pé<strong>da</strong>nt joué,<br />

de M. de Richesource, em Sir Politik. Infinita <strong>loucura</strong>, que tem tantas<br />

faces quantos são, no mundo, os caracteres, as ambições, as<br />

necessárias ilusões. Mesmo em seus pontos extremos, é a menos<br />

extrema<strong>da</strong> <strong>da</strong>s <strong>loucura</strong>s; ela é, no coração de todos os homens, o<br />

relacio<strong>na</strong>mento imaginário que ele mantém consigo mesmo. Nela<br />

engendram-se os mais quotidianos de seus defeitos. Denunciá-la é o<br />

elemento ao mesmo tempo primeiro e último de to<strong>da</strong> crítica moral 106 .<br />

É também ao mundo moral, que pertence a <strong>loucura</strong> do justo<br />

castigo. Ela pune, através <strong>da</strong>s desordens do espírito, as desordens do<br />

coração. Mas tem outros poderes: o castigo que ela inflige multiplica-<br />

se por si só <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que, punindo, ele mostra a ver<strong>da</strong>de. A<br />

justiça desta <strong>loucura</strong> consiste no fato de que ela é verídica. Verídica,<br />

pois o culpado já experimenta, no turbilhão inútil de seus fantasmas,<br />

aquilo que será para todo o sempre a dor de seu castigo: Erasto, em<br />

Mélite, já se vê perseguido pelos Eumênides, e conde<strong>na</strong>do por Minos.<br />

Verídica, também, porque o crime ocultado vem à luz <strong>na</strong> noite dessa<br />

estranha punição; a <strong>loucura</strong>, nessas palavras insensatas que não se<br />

podem domi<strong>na</strong>r, entrega seu próprio sentido; ela diz, em suas<br />

quimeras, sua ver<strong>da</strong>de secreta: seus gritos falam por sua<br />

consciência. Assim é que o delírio de Lady Macbeth revela "àqueles<br />

que não deviam saber" as palavras que durante longo tempo foram<br />

murmura<strong>da</strong>s ape<strong>na</strong>s aos "travesseiros surdos" 107 .<br />

Fi<strong>na</strong>lmente, último tipo de <strong>loucura</strong>: a <strong>da</strong> paixão desespera<strong>da</strong>. O<br />

amor decepcio<strong>na</strong>do em seu excesso, sobretudo o amor enga<strong>na</strong>do<br />

pela fatali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> morte, não tem outra saí<strong>da</strong> a não ser a demência.<br />

Enquanto tinha um objeto, o amor louco era mais amor que <strong>loucura</strong>;<br />

abando<strong>na</strong>do a si mesmo, persegue a si próprio no vazio do delírio.<br />

Punição de uma paixão demasia<strong>da</strong>mente entregue a sua violência?<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>; mas esta punição é também um apaziguamento; ela<br />

espalha, sobre a irreparável ausência, a pie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s presenças<br />

imaginárias. Ela reencontra, no paradoxo <strong>da</strong> alegria inocente, ou no<br />

heroísmo <strong>da</strong>s perseguições desati<strong>na</strong><strong>da</strong>s, a forma que se esfuma. Se<br />

leva à morte, trata-se de uma morte onde aqueles que se amam não<br />

serão nunca mais separados. Ê a última canção de Ofélia; é o delírio<br />

105 CERVANTES, Dom Quixote, Parte II, Cap. I.<br />

106 Em Les Vision<strong>na</strong>ires vê-se um Capitão poltrão que se considera um Aquiles, um<br />

Poeta empolado, um Amador de versos ignorantes, um Rico imaginário, uma<br />

jovem que se crê ama<strong>da</strong> por todos, uma pe<strong>da</strong>nte que acredita tudo poder<br />

julgar em questão de comédia e uma outra, enfim, que se toma por uma<br />

heroí<strong>na</strong> de romance.<br />

107 Macbeth, ato V, ce<strong>na</strong> 1.<br />

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