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A história da loucura na idade clássica

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mundo; o discurso com o qual se justifica resulta ape<strong>na</strong>s de uma<br />

consciência crítica do homem.<br />

Este confronto entre a consciência crítica e a experiência trágica<br />

anima tudo o que pôde ser sentido sobre a <strong>loucura</strong> e formulado a seu<br />

respeito no começo <strong>da</strong> Re<strong>na</strong>scença 82 . No entanto, esse confronto logo<br />

desaparecerá, e essa grande estrutura, ain<strong>da</strong> tão níti<strong>da</strong>, tão bem<br />

recorta<strong>da</strong> no começo do século XVI, terá desaparecido, ou quase,<br />

menos de cem anos mais tarde. Desaparecer não é bem o termo para<br />

desig<strong>na</strong>r com mais justeza o que se passou. Trata-se antes de um<br />

privilégio ca<strong>da</strong> vez mais acentuado que a Re<strong>na</strong>scença atribuiu a um<br />

dos elementos do sistema: àquele que fazia <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> uma<br />

experiência no campo <strong>da</strong> linguagem, uma experiência onde o homem<br />

era confrontado com sua ver<strong>da</strong>de moral, com as regras próprias à<br />

sua <strong>na</strong>tureza e à sua ver<strong>da</strong>de. Em suma, a consciência crítica <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong> viu-se ca<strong>da</strong> vez mais posta sob uma luz mais forte, enquanto<br />

penetravam progressivamente <strong>na</strong> penumbra suas figuras trágicas.<br />

Em breve estas serão inteiramente afasta<strong>da</strong>s. Será difícil encontrar<br />

vestígios delas durante muito tempo; ape<strong>na</strong>s algumas pági<strong>na</strong>s de<br />

Sade e a obra de Goya são testemunhas de que esse<br />

desaparecimento não significa uma derrota total: obscuramente, essa<br />

experiência trágica subsiste <strong>na</strong>s noites do pensamento e dos sonhos,<br />

e aquilo que se teve no século XVI foi não uma destruição radical mas<br />

ape<strong>na</strong>s uma ocultação. A experiência trágica e cósmica <strong>da</strong> <strong>loucura</strong><br />

viu-se mascara<strong>da</strong> pelos privilégios exclusivos de uma consciência<br />

crítica. É por isso que a experiência <strong>clássica</strong>, e através dela a<br />

experiência moder<strong>na</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, não pode ser considera<strong>da</strong> como uma<br />

figura total, que fi<strong>na</strong>lmente chegaria, por esse caminho, à sua<br />

ver<strong>da</strong>de positiva; é uma figura fragmentária que, de modo abusivo,<br />

se apresenta como exaustiva; é um conjunto desequilibrado por tudo<br />

aquilo de que carece, isto é, por tudo aquilo que o oculta. Sob a<br />

consciência crítica <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> e suas formas filosóficas ou científicas,<br />

morais ou médicas, uma abafa<strong>da</strong> consciência trágica não deixou de<br />

ficar em vigília.<br />

Foi ela que as últimas palavras de Nietzsche e as últimas visões<br />

de Van Gogh despertaram. É sem dúvi<strong>da</strong> ela que Freud, no ponto<br />

mais extremo de sua trajetória, começou a pressentir: são seus<br />

82 Mostraremos num outro estudo como a experiência do demoníaco e a redução<br />

que dele se fez, do século XVI ao XVIII, não deve ser interpreta<strong>da</strong> como uma<br />

vitória <strong>da</strong>s teorias humanitárias e médicas sobre o velho universo selvagem<br />

<strong>da</strong>s superstições, mas sim como uma retoma<strong>da</strong>, numa experiência crítica <strong>da</strong>s<br />

formas que outrora haviam veiculado as ameaças de aniquilação do mundo<br />

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