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A história da loucura na idade clássica

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e ao oceano de suas manhas 39 . Na era <strong>clássica</strong>, explica-se de bom<br />

grado a melancolia inglesa pela influência do clima marinho: o frio, a<br />

umi<strong>da</strong>de, a instabili<strong>da</strong>de do tempo, to<strong>da</strong>s essas fi<strong>na</strong>s gotículas de<br />

água que penetram os ca<strong>na</strong>is e as fibras do corpo humano e lhe<br />

fazem perder a firmeza, predispõem à <strong>loucura</strong> 40 . Fi<strong>na</strong>lmente,<br />

deixando de lado to<strong>da</strong> uma imensa literatura que iria de Ofélia à La<br />

Lorelei, citemos ape<strong>na</strong>s as grandes análises meio antropológicas,<br />

meio cosmológicas de Heinroth, que fazem <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> como que a<br />

manifestação no homem de um elemento obscuro e aquático,<br />

sombria desordem, caos movediço, germe e morte de to<strong>da</strong>s as<br />

coisas, que se opõe à estabili<strong>da</strong>de luminosa e adulta do espírito 41 .<br />

Mas se a <strong>na</strong>vegação dos loucos se liga, <strong>na</strong> imagi<strong>na</strong>ção ocidental,<br />

a tantos motivos imemoriais, por que tão bruscamente, por volta do<br />

século XV, esta súbita formulação do tema, <strong>na</strong> literatura e <strong>na</strong><br />

iconografia? Por que vemos surgir de repente a silhueta <strong>da</strong> Nau dos<br />

Loucos e sua tripulação insa<strong>na</strong> invadir as paisagens mais familiares?<br />

Por que, <strong>da</strong> velha aliança entre a água e a <strong>loucura</strong>, <strong>na</strong>sceu um dia,<br />

nesse dia, essa barca?<br />

É que ela simboliza to<strong>da</strong> uma inquietude, soergui<strong>da</strong> subitamente<br />

no horizonte <strong>da</strong> cultura européia, por volta do fim <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média. A<br />

<strong>loucura</strong> e o louco tor<strong>na</strong>m-se perso<strong>na</strong>gens maiores em sua<br />

ambigüi<strong>da</strong>de: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e<br />

medíocre ridículo dos homens.<br />

Antes de mais <strong>na</strong><strong>da</strong>, to<strong>da</strong> uma literatura de contas e<br />

morali<strong>da</strong>des. Sua origem, sem dúvi<strong>da</strong>, é bem remota. Mas ao fi<strong>na</strong>l <strong>da</strong><br />

I<strong>da</strong>de Média, ela assume uma superfície considerável: longa série de<br />

"<strong>loucura</strong>s" que, estigmatizando como no passado vícios e defeitos,<br />

aproximam-nos todos não mais do orgulho, não mais <strong>da</strong> falta de<br />

cari<strong>da</strong>de, não mais do esquecimento <strong>da</strong>s virtudes cristãs, mas de<br />

uma espécie de grande desatino pelo qual, ao certo, ninguém é<br />

exatamente culpável mas que arrasta a todos numa complacência<br />

secreta 42 . A denúncia <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> tor<strong>na</strong>-se a forma geral <strong>da</strong> crítica.<br />

Nas farsas e <strong>na</strong>s sotias, a perso<strong>na</strong>gem do Louco, do Simplório, ou do<br />

39 De LANCRE, De !'inconstante des mauvais anges, Paris, 1612.<br />

40 G. CHEYNE, The English Malady, Londres, 1733.<br />

41 Necessário acrescentar que o «lu<strong>na</strong>tismo» não é estranho a esse tema. A lua<br />

cuja influência sobre a <strong>loucura</strong> foi admiti<strong>da</strong> durante séculos, é o mais aquático<br />

dos astros. O parentesco <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> com o sol e o fogo surgiu bem mais tarde<br />

(Nerval, Nietzsche, Artaud).<br />

42 Cf. por exemplo, Des six manières de fols; ms. Arse<strong>na</strong>l 2767.<br />

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