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A história da loucura na idade clássica

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ealmente ameaçadores <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que o mal era rigorosamente<br />

objetivado, desenhado no espaço de um corpo e investido num<br />

processo puramente orgânico. Com isso, a medici<strong>na</strong> simultaneamente<br />

punha um fim a esse reconhecimento lírico e ocultava, <strong>na</strong><br />

objetivi<strong>da</strong>de de uma constatação, a acusação moral que ela<br />

carregava. E o fato de ver esse mal, essa falta e essa cumplici<strong>da</strong>de<br />

dos homens tão velha quanto o mundo, assim claramente situados no<br />

espaço exterior, reduzidos ao silêncio <strong>da</strong>s coisas e punidos ape<strong>na</strong>s<br />

nos outros, <strong>da</strong>va ao conhecimento a inesgotável satisfação de ser<br />

inocentado <strong>na</strong> justiça feita e protegido de sua própria acusação pelo<br />

apoio de uma sere<strong>na</strong> observação à distância. No século XIX, a<br />

paralisia geral é a "boa <strong>loucura</strong>", no sentido em que se fala de "boa<br />

forma". A grande estrutura que coman<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a percepção <strong>da</strong> <strong>loucura</strong><br />

está representa<strong>da</strong> exatamente <strong>na</strong> análise dos sintomas psiquiátricos<br />

<strong>da</strong> sífilis nervosa 15 . A falta, sua conde<strong>na</strong>ção e seu reconhecimento,<br />

manifestados tanto quanto ocultados numa objetivi<strong>da</strong>de orgânica: tal<br />

era a expressão mais feliz <strong>da</strong>quilo que o século XIX entendia e queria<br />

entender por <strong>loucura</strong>. Tudo o que houve de "filistino" em sua atitude<br />

em relação à doença mental está aí representado exatamente, e até<br />

Freud, ou quase, é em nome <strong>da</strong> "paralisia geral" que esse propósito<br />

filistino <strong>da</strong> medici<strong>na</strong> se defenderá contra to<strong>da</strong> outra forma de acesso<br />

à ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>.<br />

A descoberta científica <strong>da</strong> paralisia geral não estava prepara<strong>da</strong><br />

por essa antropologia que se constituíra uns vinte anos antes, mas a<br />

significação muito intensa que ela assume, o fascínio que ela exerce<br />

durante mais de meio século encontram aí sua origem precisa.<br />

Porém a análise geral tem ain<strong>da</strong> uma outra importância: a falta,<br />

com tudo o que nela pode haver de interior e de oculto, logo encontra<br />

seu castigo e seu lado objetivo no organismo. Esse tema é muito<br />

importante para a psiquiatria do século XIX: a <strong>loucura</strong> fecha o<br />

homem <strong>na</strong> objetivi<strong>da</strong>de. Durante o período clássico, a transcendência<br />

do delírio assegurava à <strong>loucura</strong>, por mais manifesta que fosse, uma<br />

15 Diante <strong>da</strong> paralisia geral, a histeria é a «má <strong>loucura</strong>»: não há falta<br />

determinável, nem determi<strong>na</strong>ção orgânica, nem comunicação possível. A<br />

duali<strong>da</strong>de paralisia geral-histeria marca os extremos do domínio <strong>da</strong><br />

experiência psiquiátrica do século XX, o eterno objeto de uma dupla e<br />

constante preocupação. Seria possível mostrar, dever-se-á mostrar que as<br />

explicações <strong>da</strong> histeria sempre foram, até Freud (excluído ele), toma<strong>da</strong>s de<br />

empréstimo ao modelo <strong>da</strong> paralisia geral, mas desse modelo depurado,<br />

psicologizado, tor<strong>na</strong>do transparente.<br />

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