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A história da loucura na idade clássica

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Tristão, o Eremita 102 .<br />

Comecemos pela mais importante, e também a mais durável —<br />

uma vez que o século XVIII ain<strong>da</strong> reconhecerá suas formas ape<strong>na</strong>s<br />

levemente apaga<strong>da</strong>s 103 : a <strong>loucura</strong> pela identificação romanesca. Suas<br />

características foram fixa<strong>da</strong>s para sempre por Cervantes. Mas esse<br />

tema é incansavelmente retomado: a<strong>da</strong>ptações diretas (o Dom<br />

Quixote de Guérin de Bouscal é representado em 1639; dois anos<br />

mais tarde ele leva à ce<strong>na</strong> O Governo de Sancho Pança),<br />

reinterpretações de episódios em particular (As Loucuras de<br />

Cardênio, de Pichou, são uma variação sobre o tema do "Cavaleiro<br />

Esfarrapado" <strong>da</strong> Sierra More<strong>na</strong>) ou, de modo mais indireto, sátira dos<br />

romances fantásticos (como em A Falsa Clélia, de Subligny e, no<br />

próprio interior <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa, no episódio de Julie d'Arviane). As<br />

quimeras se transmitem do autor para o leitor, mas aquilo que de um<br />

lado era fantasia tor<strong>na</strong>-se, do outro, fantasma; o engenho do escritor<br />

é recebido, com to<strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de, como se fosse figura do real.<br />

Aparentemente, o que existe aí é ape<strong>na</strong>s a crítica fácil dos romances<br />

de invenção; mas, sob a superfície, constata-se to<strong>da</strong> uma inquietação<br />

a respeito <strong>da</strong>s relações, <strong>na</strong> obra de arte, entre o real e o imaginário,<br />

e talvez também a respeito <strong>da</strong> confusa comunicação entre a invenção<br />

fantástica e as fasci<strong>na</strong>ções do delírio.<br />

É às imagi<strong>na</strong>ções desenfrea<strong>da</strong>s que devemos a invenção <strong>da</strong>s artes; o Capricho<br />

dos Pintores, Poetas e Músicos não passa de um eufemismo para exprimir sua<br />

Loucura 104 .<br />

Loucura em que são postos em questão os valores de outra<br />

época, de outra arte, de outra moral, mas onde se refletem também,<br />

embaralha<strong>da</strong>s e agita<strong>da</strong>s, estranhamente comprometi<strong>da</strong>s umas pelas<br />

outras numa quimera comum, to<strong>da</strong>s as formas, mesmo as mais<br />

distantes, <strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção huma<strong>na</strong>.<br />

Bem próxima desta primeira, a <strong>loucura</strong> <strong>da</strong> vã presunção. Mas<br />

não é com um modelo literário que o louco se identifica; é com ele<br />

mesmo, e através de uma adesão imaginária que lhe permite atribuir<br />

a si mesmo to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong>des, to<strong>da</strong>s as virtudes ou poderes de que<br />

carece. Ele recebe a herança, aqui, <strong>da</strong> velha Philautia de Erasmo.<br />

Sendo pobre, é rico; feio, se admira; com os grilhões ain<strong>da</strong><br />

amarrados aos pés, acredita-se um Deus. Como o licenciado Osuma,<br />

102 Escritor francês, sêculo XVII, autor de romances e tragêdias (N. do T.).<br />

103 É muito comum no século XVIII, especialmente depois de Rousseau, a idéia de<br />

que a leitura de romances ou os espetáculos teatrais levam a pessoa à<br />

<strong>loucura</strong>. Cf. infra, Parte II, Cap. 9.<br />

104 SAINT-ÉVREMOND, Sir Politik would be, ato V, ce<strong>na</strong> II.<br />

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