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A história da loucura na idade clássica

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uso de pó de crânio, mas, a crer em suas palavras, isso não passa de<br />

"uma cabeça morta", sem nenhuma virtude. Melhor seria empregar<br />

em seu lugar o crânio ou o cérebro "de um homem moço morto<br />

recentemente de morte violenta" 16 . É também contra as convulsões<br />

que se utilizava sangue humano ain<strong>da</strong> quente, desde que não se<br />

abusasse dessa terapêutica cujo excesso podia levar à mania 17 .<br />

Mas eis-nos já, com a sobredetermi<strong>na</strong>ção dessa imagem do<br />

sangue, numa outra região <strong>da</strong> eficácia terapêutica: a dos valores<br />

simbólicos. Esse foi um outro obstáculo ao ajustamento <strong>da</strong>s<br />

farmacopéias às novas formas <strong>da</strong> medici<strong>na</strong> e <strong>da</strong> fisiologia. Alguns<br />

sistemas puramente simbólicos conservaram sua solidez até o fi<strong>na</strong>l<br />

<strong>da</strong> era <strong>clássica</strong>, transmitindo, mais do que receitas, mais do que<br />

segredos técnicos, imagens e símbolos surdos que se ligavam a um<br />

onirismo imemorial. A Serpente, momento <strong>da</strong> Que<strong>da</strong> e forma visível<br />

<strong>da</strong> Tentação, o Inimigo por excelência <strong>da</strong> Mulher, ao mesmo tempo é<br />

para ela, no mundo <strong>da</strong> salvação, o remédio mais precioso. Não era<br />

apropriado que aquilo que fora causa de pecado e morte se tor<strong>na</strong>sse<br />

causa de cura e vi<strong>da</strong>? E entre to<strong>da</strong>s as serpentes, a mais venenosa<br />

deve ser a mais eficaz contra os vapores e as doenças <strong>da</strong> mulher. "É<br />

às víboras que devo", escreve Mme de Sévigné, "a saúde perfeita de<br />

que gozo... Elas temperam o sangue, purificam-no, refrescam-no." E<br />

ela deseja serpentes ver<strong>da</strong>deiras, não um remédio em frasco<br />

produzido pelo farmacêutico: uma boa cobra do campo:<br />

É preciso que sejam víboras ver<strong>da</strong>deiras, em carne e osso, e não em pó;<br />

o pó esquenta, a menos que seja tomado num caldo, ou em creme cozido,<br />

ou em alguma outra coisa que refresque: Peça ao sr. de Boissy que lhe<br />

mande deze<strong>na</strong>s de víboras de Poitou numa caixa, separa<strong>da</strong>s ca<strong>da</strong> três ou<br />

quatro, a fim de que se sintam à vontade, com farelo e musgo. Pegue<br />

duas to<strong>da</strong>s as manhãs, corte-lhes a cabeça, tire a pele, corte em pe<strong>da</strong>ços<br />

e recheie o corpo com um frango. Faça isso durante um mês 18 .<br />

Contra os males dos nervos, a imagi<strong>na</strong>ção desregra<strong>da</strong> e os<br />

furores do amor, os valores simbólicos multiplicam seus esforços.<br />

Somente o ardor pode extinguir o ardor, e são necessários corpos<br />

vivos, violentos e densos, mil vezes levados ao ponto de<br />

incandescência nos fogos mais vivos, para apaziguar os apetites<br />

desmesurados <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. No "Apêndice <strong>da</strong>s fórmulas" que<br />

acompanha seu Traité de la nymphomanie, Bienville propõe 17<br />

16 LEMERY, Pharmacopée universelle, p. 124; pp. 359 e 752.<br />

17 BUCHOZ, loc. cit.<br />

18 Mme DE SÉVIGNÉ, Carta de 8.7.1685, Oeuvres, VII, p. 421.<br />

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