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A história da loucura na idade clássica

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sentidos, tendo o cérebro por órgão. Passou sub-repticiamente de um<br />

problema médico claramente definido em sua época (gênese <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong> a partir de uma aluci<strong>na</strong>ção dos sentidos ou de um delírio do<br />

espírito — teoria periférica ou teoria central, como diríamos em nossa<br />

linguagem) para um problema filosófico que nem de direito nem de<br />

fato se sobrepõe ao primeiro: a <strong>loucura</strong> prova ou não a materiali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> alma? Voltaire fingiu repudiar, quanto à primeira questão, to<strong>da</strong><br />

forma de resposta sensualista, a fim de melhor impô-la como solução<br />

para o segundo problema — indicando esta retoma<strong>da</strong> do<br />

sensualismo, por outro lado, que de fato ele havia abando<strong>na</strong>do a<br />

primeira questão, a questão médica do papel dos órgãos dos sentidos<br />

<strong>na</strong> origem <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>.<br />

Em si mesma e despoja<strong>da</strong> <strong>da</strong>s intenções polêmicas que oculta,<br />

esta superposição é significativa. Pois ela não pertence à<br />

problemática médica do século XVIII; mistura ao problema sentido-<br />

cérebro, periferia-centro, compatível com a reflexão dos médicos,<br />

uma análise crítica que repousa sobre a dissociação entre a alma e o<br />

corpo. Dia virá em que, para os próprios médicos, o problema <strong>da</strong><br />

origem, <strong>da</strong> determi<strong>na</strong>ção causal, <strong>da</strong> sede <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> assumirá valores<br />

materialistas ou não. Mas esses valores só serão reconhecíveis no<br />

século XIX, quando, exatamente, a problemática defini<strong>da</strong> por Voltaire<br />

for aceita como evidente; então, e somente então, serão possíveis<br />

uma psiquiatria espiritualista e uma psiquiatria materialista, uma<br />

concepção <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> que a reduz ao corpo e uma outra que a deixa<br />

valer no elemento imaterial <strong>da</strong> alma. Mas o texto de Voltaire,<br />

exatamente <strong>na</strong>quilo que tem de contraditório, de abusivo, <strong>na</strong><br />

artimanha nele intencio<strong>na</strong>lmente coloca<strong>da</strong>, não é representativo <strong>da</strong><br />

experiência <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> <strong>na</strong>quilo que ela podia ter, no século XVIII, de<br />

vivo, de maciço, de espesso. Esse texto orienta-se, sob a<br />

coorde<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> ironia, <strong>na</strong> direção de algo que transbor<strong>da</strong>, no tempo,<br />

essa experiência, <strong>na</strong> direção <strong>da</strong> posição menos irônica que existe<br />

sobre o problema <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Ele indica e deixa pressagiar, sob outra<br />

dialética e polêmica, <strong>na</strong> sutileza ain<strong>da</strong> vazia de conceitos, aquilo que<br />

no século XIX se tor<strong>na</strong>rá indubitavelmente evidente: ou a <strong>loucura</strong> é<br />

uma afecção orgânica de um princípio material, ou é a perturbação<br />

espiritual de uma alma imaterial.<br />

O fato de Voltaire ter esboçado do exterior, e através de desvios<br />

complexos, essa problemática simples não autoriza a reconhecê-la<br />

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