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A história da loucura na idade clássica

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permite compreendê-la sob um outro ângulo.<br />

Vimos a decisão com que Descartes evitava, no caminho de sua<br />

dúvi<strong>da</strong>, a possibili<strong>da</strong>de de estar louco; enquanto to<strong>da</strong>s as outras formas<br />

do erro e <strong>da</strong> ilusão envolviam uma região <strong>da</strong> certeza mas liberavam,<br />

por outro lado, uma forma <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, a <strong>loucura</strong> era excluí<strong>da</strong>, não<br />

deixando vestígio algum, nenhuma cicatriz <strong>na</strong> superfície do pensamento.<br />

No regime <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> e em seu movimento em direção à<br />

ver<strong>da</strong>de, a <strong>loucura</strong> não tinha eficácia alguma. É tempo, agora, de<br />

in<strong>da</strong>gar o porquê disso e se Descartes contornou o problema <strong>na</strong><br />

medi<strong>da</strong> em que era insuperável ou se essa recusa <strong>da</strong> <strong>loucura</strong><br />

como instrumento <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> não tem sentido ao nível <strong>da</strong> <strong>história</strong> <strong>da</strong><br />

cultura — deixando transparecer um novo estatuto do desatino no<br />

mundo clássico. Parece que, se a <strong>loucura</strong> não intervém <strong>na</strong><br />

economia <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, é porque ela ao mesmo tempo está sempre<br />

presente e sempre excluí<strong>da</strong> do propósito de duvi<strong>da</strong>r e <strong>da</strong> vontade<br />

que o anima desde o começo. Todo o percurso que vai do projeto<br />

inicial <strong>da</strong> razão aos primeiros fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> ciência costeia as<br />

margens de uma <strong>loucura</strong> que ele evite incessantemente através de<br />

um parti pris ético que não é outra coisa senão a vontade de<br />

manter -se desperto, o propósito de vagar "ape<strong>na</strong>s em busca <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de" 14 . Existe a eter<strong>na</strong> tentação do sono e do abandono às<br />

quimeras que ameaçam a razão e que são conjura<strong>da</strong>s pela decisão<br />

sempre renova<strong>da</strong> de abrir os olhos para o ver<strong>da</strong>deiro:<br />

Uma certa preguiça me arrasta insensivelmente para o ritmo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

comum. E assim como um escravo, que no sono goza de uma liber<strong>da</strong>de<br />

imaginária, receia acor<strong>da</strong>r quando começa a supor que sua liber<strong>da</strong>de é<br />

ape<strong>na</strong>s um sonho... eu também receio acor<strong>da</strong>r desse torpor 15 .<br />

No percurso <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, é possível desde logo pôr de lado a<br />

<strong>loucura</strong>, pois a dúvi<strong>da</strong>, <strong>na</strong> própria medi<strong>da</strong> em que é metódica, é<br />

envolvi<strong>da</strong> por essa vontade de despertar que, a todo momento, é<br />

um desgru<strong>da</strong>r voluntário <strong>da</strong>s complacências <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Assim como<br />

o pensamento que duvi<strong>da</strong> implica o pensamento e aquele que<br />

pensa, a vontade de duvi<strong>da</strong>r já excluiu os encantamentos<br />

involuntários do desa tino e a possibili<strong>da</strong>de nietzschia<strong>na</strong> do filósofo<br />

louco. Bem antes do Cogito, existe a arcaica implicação <strong>da</strong><br />

vontade e <strong>da</strong> opção entre razão e desatino. A razão <strong>clássica</strong> não<br />

encontra a ética no ponto termi<strong>na</strong>l de sua ver<strong>da</strong>de, sob a forma de<br />

14 Discours de la Méthode, Parte IV Pléiade, p. 147.<br />

15 Première méditation, Pléiade, p. 272.<br />

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