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A história da loucura na idade clássica

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aparência e ver<strong>da</strong>de já está presente no próprio interior <strong>da</strong> aparência,<br />

pois se a aparência fosse coerente consigo mesma, ela seria pelo<br />

menos uma alusão à ver<strong>da</strong>de e como que sua forma vazia. Ê <strong>na</strong>s<br />

próprias coisas que se deve descobrir essa inversão — inversão que,<br />

a partir desse momento, não terá direção única nem termo<br />

preestabelecido; não <strong>da</strong> aparência em direção à ver<strong>da</strong>de, mas <strong>da</strong><br />

aparência em direção dessa outra que a nega, depois novamente <strong>na</strong><br />

direção <strong>da</strong>quilo que contesta e renega essa negação, de modo que o<br />

movimento não se detém nunca, e antes mesmo dessa grande<br />

conversão que exigia Calvino ou Franck, Erasmo se sabe detido pelas<br />

mil conversões menores que a aparência lhe prescreve em seu<br />

próprio nível. O Sileno invertido não é o símbolo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de que Deus<br />

nos retirou, é muito mais e muito menos que isso: é o símbolo, a um<br />

nível bem chão, <strong>da</strong>s próprias coisas, esta implicação dos contrários<br />

que nos impossibilita, talvez para sempre, o único e reto caminho <strong>na</strong><br />

direção <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Ca<strong>da</strong> coisa<br />

mostra duas faces. A face exterior mostra a morte; olhem no interior, e lá há<br />

vi<strong>da</strong>, ou inversamente. A beleza recobre a feiúra, a riqueza a indigência, a<br />

infâmia a glória, o saber a ignorância... Em resumo, abram o Sileno e<br />

encontrarão o contrário <strong>da</strong>quilo que ele mostra 86 .<br />

Na<strong>da</strong> há que não esteja mergulhado <strong>na</strong> imediata contradição,<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> que não incite o homem a aderir, por vontade própria, a sua<br />

própria <strong>loucura</strong>; compara<strong>da</strong> com a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s essências e de Deus,<br />

to<strong>da</strong> a ordem huma<strong>na</strong> é ape<strong>na</strong>s uma <strong>loucura</strong> 87 .<br />

E é <strong>loucura</strong> ain<strong>da</strong>, nessa ordem, o movimento através do qual se<br />

tenta subtrair-se a essa situação para chegar até Deus. No século<br />

XVI, mais que em qualquer outra época, a Epístola aos Coríntios<br />

assume um prestígio incomparável: "Falo <strong>na</strong> condição de louco, e o<br />

sou mais que ninguém". Loucura é esta renúncia ao mundo; <strong>loucura</strong>,<br />

o abandono total à vontade obscura de Deus; <strong>loucura</strong>, esta procura<br />

cujo fim não se conhece — esses são outros tantos temas caros aos<br />

místicos. Tauler já evocava esse percurso do abandono <strong>da</strong>s <strong>loucura</strong>s<br />

do mundo, mas entregando-se, nesse mesmo ato, a <strong>loucura</strong>s mais<br />

sombrias e mais desoladoras:<br />

A peque<strong>na</strong> <strong>na</strong>u é leva<strong>da</strong> ao largo e como o homem se encontra nesse estado<br />

de abandono, ressurgem nele to<strong>da</strong>s as angústias e to<strong>da</strong>s as tentações, e<br />

to<strong>da</strong>s as imagens, e a miséria... 88<br />

86 ERASMO, loc. cit., XXIX, p. 53.<br />

87 O platonismo <strong>da</strong> Re<strong>na</strong>scença, sobretudo a partir do século XVI, é um platonismo<br />

<strong>da</strong> ironia e <strong>da</strong> crítica.<br />

88 TAULER, Predigter, XLI. Citado por GANDILLAC, Valeur du temes <strong>da</strong>ns la<br />

pé<strong>da</strong>gogie spirituelle de Tauler, p. 62.<br />

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