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A história da loucura na idade clássica

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norma é, aqui, Nosso Senhor, que quis ficar rodeado por lunáticos,<br />

endemoniados, loucos, tentados, possuídos 44 .<br />

Esses homens entregues aos poderes do inumano formam ao<br />

redor <strong>da</strong>queles que representam a Sabedoria eter<strong>na</strong>, ao redor <strong>da</strong>quele<br />

que a encar<strong>na</strong>, uma eter<strong>na</strong> ocasião para glorificação: pois, cercando-o,<br />

eles exaltam ao mesmo tempo a razão que lhes foi nega<strong>da</strong> e<br />

fornecem-lhe a ocasião para humilhar-se, para reconhecer que essa<br />

razão só é atribuí<strong>da</strong> por graça divi<strong>na</strong>. Contudo, há mais ain<strong>da</strong>: Cristo<br />

não quis ape<strong>na</strong>s cercar-se de lunáticos, ele mesmo quis passar aos<br />

olhos de todos por demente, percorrendo assim, em sua encar<strong>na</strong>ção,<br />

to<strong>da</strong>s as misérias <strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção huma<strong>na</strong>: a lou cura tor<strong>na</strong>-se assim a<br />

forma última, o último degrau do Deus feito homem, antes <strong>da</strong><br />

realização e <strong>da</strong> libertação <strong>da</strong> Cruz:<br />

Oh, meu Salvador, quiseste ser o escân<strong>da</strong>lo dos judeus e a <strong>loucura</strong> dos gentios;<br />

quiseste parecer alie<strong>na</strong>do; sim, Nosso Senhor quis passar por insano, como<br />

está escrito nos Santos Evangelhos, e acreditou -se que ele havia se tor<strong>na</strong>do<br />

um furioso. Dicebant quoniam in furorem versus est. Seus apóstolos o<br />

encararam como um homem encolerizado e assim lhes apareceu a fim de<br />

que fossem testemunhas de que ele tinha padecido de to<strong>da</strong>s as nossas<br />

doenças e santificado todos nossos estados de aflição para lhes ensi<strong>na</strong>r, e<br />

a nós também, que devemos mostrar compaixão por aqueles que sucumbem<br />

a essas enfermi<strong>da</strong>des 45 .<br />

Vindo a este mundo, Cristo aceitava retomar todos os signos <strong>da</strong><br />

condição huma<strong>na</strong> e os próprios estigmas <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza degra<strong>da</strong><strong>da</strong>; <strong>da</strong><br />

miséria à morte, percorreu todo o caminho <strong>da</strong> Paixão, que era<br />

também o caminho <strong>da</strong>s paixões, <strong>da</strong> sabedoria esqueci<strong>da</strong> e <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>.<br />

E por ter sido uma <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> Paixão — a forma última, num certo<br />

sentido, antes <strong>da</strong> morte — a <strong>loucura</strong> deve transformar-se, <strong>na</strong>queles que<br />

agora a sofrem, em objeto de respeito e compaixão.<br />

Respeitar a <strong>loucura</strong> não é decifrar nela o acidente involuntário e<br />

inevitável <strong>da</strong> doença; é reconhecer esse limite inferior <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

huma<strong>na</strong>, limite não acidental mas essencial. Como a morte é o fim <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> huma<strong>na</strong> no plano do tempo, a <strong>loucura</strong> é o fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no plano<br />

<strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de. E assim como a morte foi santifica<strong>da</strong> pela morte de<br />

Cristo, a <strong>loucura</strong>, <strong>na</strong>quilo que tem de mais bestial, foi também<br />

santifica<strong>da</strong>. A 29 de março de 1654, São Vicente de Paula anunciava a<br />

Jean Barreau, ele também um congregado, que seu irmão acabava de<br />

44 Sermão citado por ABELLY, Vie du vénérable serviteur de Dieu Vincent de Paul,<br />

Paris, 1664, I, p. 199.<br />

45 Idem, p. 198. São Vicente de Paula alude aqui ao texto de São Paulo (I. Cor., I,<br />

23): Ju<strong>da</strong>eis quidem scan<strong>da</strong>lum, Gentibus autem stultitiam.<br />

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