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A história da loucura na idade clássica

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o louco é em geral deixado em liber<strong>da</strong>de durante o dia: esta liber<strong>da</strong>de, para<br />

quem não conhece o freio <strong>da</strong> razão, já é um remédio que impede o alívio<br />

provocado por uma imagi<strong>na</strong>ção solta ou perdi<strong>da</strong>.<br />

Em si mesmo, e sem ser outra coisa além dessa liber<strong>da</strong>de<br />

reclusa, o inter<strong>na</strong>mento é portanto agente de cura; é uma enti<strong>da</strong>de<br />

médica, não tanto em razão dos cui<strong>da</strong>dos que proporcio<strong>na</strong>, mas em<br />

virtude do próprio jogo <strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, do silêncio, dos<br />

limites e do movimento, que os organiza espontaneamente e conduz<br />

o erro à ver<strong>da</strong>de, a <strong>loucura</strong> à razão. A liber<strong>da</strong>de inter<strong>na</strong><strong>da</strong> cura por si<br />

mesma, como logo o fará a linguagem libera<strong>da</strong> <strong>na</strong> psicanálise, porém<br />

através de um movimento exatamente contrário: não permitindo aos<br />

fantasmas que se materializem em palavras e se permutem entre si,<br />

mas obrigando-os a apagar-se diante do silêncio e pesa<strong>da</strong>mente real<br />

<strong>da</strong>s coisas.<br />

O passo essencial está <strong>da</strong>do: o inter<strong>na</strong>mento recebeu sua carta<br />

de nobreza médica, tornou-se lugar de cura, não mais o lugar onde a<br />

<strong>loucura</strong> espreitava e se conservava obscuramente até a morte, mas o<br />

lugar onde, por uma espécie de mecanismo autóctone, se supõe que<br />

ela acabe por suprimir a si mesma.<br />

O importante é que essa transformação <strong>da</strong> casa de inter<strong>na</strong>mento<br />

em asilo não se fez através <strong>da</strong> introdução progressiva <strong>da</strong> medici<strong>na</strong> —<br />

espécie de invasão proveniente do exterior — mas através de uma<br />

reestruturação inter<strong>na</strong> desse espaço ao qual a era <strong>clássica</strong> não havia<br />

<strong>da</strong>do outras funções além <strong>da</strong>s de exclusão e correção. A progressiva<br />

alteração de suas significações sociais, a crítica política <strong>da</strong> repressão<br />

e a crítica econômica <strong>da</strong> assistência, a apropriação de todo o campo<br />

do inter<strong>na</strong>mento pela <strong>loucura</strong>, enquanto to<strong>da</strong>s as outras figuras do<br />

desatino foram dele pouco a pouco afasta<strong>da</strong>s, tudo isso é que faz do<br />

inter<strong>na</strong>mento um lugar duplamente privilegiado pela <strong>loucura</strong>: o lugar<br />

de sua ver<strong>da</strong>de e o lugar de sua abolição. E, nessa medi<strong>da</strong>, ele se<br />

tor<strong>na</strong> realmente sua desti<strong>na</strong>ção; entre eles, a ligação será doravante<br />

necessária. E as funções que podiam parecer mais contraditórias —<br />

proteção contra os perigos provocados pelos insensatos e cura <strong>da</strong>s<br />

doenças — essas funções encontram fi<strong>na</strong>lmente uma espécie de<br />

repenti<strong>na</strong> harmonia: uma vez que é no espaço fechado mas vazio do<br />

inter<strong>na</strong>mento que a <strong>loucura</strong> formula sua ver<strong>da</strong>de e libera sua<br />

<strong>na</strong>tureza, de uma só vez e através ape<strong>na</strong>s <strong>da</strong> operação do<br />

inter<strong>na</strong>mento, o perigo público será conjurado, e os signos <strong>da</strong> doença<br />

elimi<strong>na</strong>dos.<br />

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