15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Quando um homem age em conformi<strong>da</strong>de com as luzes <strong>da</strong> razão sadia, basta<br />

atentar para seus gestos, seus movimentos, seus desejos, seus discursos,<br />

seus raciocínios, para descobrir a ligação que essas ações têm entre si e o fim<br />

para o qual tendem.<br />

Do mesmo modo, tratando-se de um louco<br />

não é necessário que éle elabore falsos silogismos para perceber a aluci<strong>na</strong>ção<br />

ou o delírio que o atingiu; seu erro e sua aluci<strong>na</strong>ção são facilmente<br />

perceptíveis através <strong>da</strong> discordância que existe entre suas ações e a conduta<br />

dos outros homens 10 .<br />

O procedimento é indireto sob o aspecto <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de<br />

perceber a <strong>loucura</strong> a não ser com referência à ordem <strong>da</strong> razão e a<br />

essa consciência que temos diante de um homem razoável e que nos<br />

assegura <strong>da</strong> coerência, <strong>da</strong> lógica, <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de do discurso; esta<br />

consciência permanece adormeci<strong>da</strong> até a irrupção <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, que<br />

aparece de chofre não porque seja positiva mas justamente porque<br />

pertence à ordem <strong>da</strong> ruptura. Ela surge de repente como<br />

discordância, o que significa que é inteiramente negativa; mas é<br />

exatamente esse caráter negativo que lhe assegura sua<br />

instantanei<strong>da</strong>de. Quanto menos a <strong>loucura</strong> se manifesta no que ela<br />

tem de positivo, mais o louco, sobre a trama contínua <strong>da</strong> razão — já<br />

quase esqueci<strong>da</strong> por ter-se tor<strong>na</strong>do demasiado familiar — surge<br />

bruscamente como irrecusável diferença.<br />

Detenhamo-nos um pouco neste primeiro ponto. A certeza tão<br />

apressa<strong>da</strong> e tão presunçosa com a qual o século XVIII sabe<br />

reconhecer o louco, no próprio momento em que confessa não mais<br />

poder definir a <strong>loucura</strong>, constitui sem dúvi<strong>da</strong> uma estrutura<br />

importante. Caráter imediatamente concreto, evidente e preciso do<br />

louco; perfil confuso, distante, quase imperceptível <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. E não<br />

se trata aí de um paradoxo, mas de uma relação bem <strong>na</strong>tural de<br />

complementari<strong>da</strong>de. O louco é demasia<strong>da</strong> e diretamente sensível<br />

para que se possa reconhecer nele os discursos gerais <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>; ele<br />

só surge numa existência pontual — espécie de <strong>loucura</strong> ao mesmo<br />

tempo individual e anônima, <strong>na</strong> qual ele se desig<strong>na</strong> sem nenhum<br />

risco de errar, mas que desaparece tão logo percebi<strong>da</strong>. Quanto à<br />

<strong>loucura</strong>, está infinitamente recua<strong>da</strong>; é uma essência distante,<br />

cabendo aos nosógrafos o trabalho de a<strong>na</strong>lisá-la em si mesma.<br />

Esta evidência tão direta do louco, sobre o fundo de uma razão<br />

10 BOISSIER DE SAUVAGES, loc. cit., VII, p. 34.<br />

201

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!