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A história da loucura na idade clássica

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organização singular, abusiva, cuja particulari<strong>da</strong>de obsti<strong>na</strong><strong>da</strong> perfaz a<br />

<strong>loucura</strong>. Portanto, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de a <strong>loucura</strong> não está de todo <strong>na</strong> imagem,<br />

a qual em si mesma não é ver<strong>da</strong>deira ou falsa, razoável ou louca;<br />

tampouco está no raciocínio, que é forma simples, <strong>na</strong><strong>da</strong> revelando<br />

além <strong>da</strong>s figuras indubitáveis <strong>da</strong> lógica. E no entanto a <strong>loucura</strong> está<br />

numa e noutro. Numa figura particular do relacio<strong>na</strong>mento entre<br />

ambos.<br />

Consideremos um exemplo tomado de Diemerbroek. Um homem<br />

estava com melancolia profun<strong>da</strong>. Como todos os melancólicos, seu<br />

espírito estava apegado a uma idéia fixa e esta idéia era para ele<br />

motivo de uma tristeza sempre renova<strong>da</strong>. Acusava-se de ter matado<br />

o filho e, no auge do remorso, dizia que Deus, para castigá-lo, havia<br />

colocado às suas costas um demônio encarregado de tentá-lo como<br />

aquele que havia tentado ao Senhor. Ele via esse demônio,<br />

conversava com ele, ouvia suas censuras e respondia-lhe. Não<br />

conseguia entender como todo mundo à sua volta se recusava a<br />

admitir essa presença. Assim é a <strong>loucura</strong>: esse remorso, essa crença,<br />

essa aluci<strong>na</strong>ção, esses discursos. Em suma, todo esse conjunto de<br />

convicções e imagens que constituem um delírio. Diemerbroek<br />

procura saber quais são as "causas" dessa <strong>loucura</strong>, como pôde surgir.<br />

E eis o que descobre: havia levado o filho para <strong>na</strong><strong>da</strong>r, e ele se<br />

afogara. A partir de então, considera-se responsável por essa morte.<br />

Assim, é possível reconstituir <strong>da</strong> seguinte maneira o desenvolvimento<br />

dessa <strong>loucura</strong>. Julgando-se culpado, esse homem diz que o homicídio<br />

é execrável para Deus <strong>na</strong>s Alturas, e <strong>da</strong>í imagi<strong>na</strong> estar conde<strong>na</strong>do<br />

para to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de. E como sabe que o maior suplício <strong>da</strong> <strong>da</strong><strong>na</strong>ção<br />

consiste em ser entregue a Satã, diz que "um demônio horrível está<br />

junto dele". Ele não vê esse demônio, mas "como ele não se afasta<br />

desse pensamento" e como<br />

o considera bastante verídico, impõe a seu cérebro uma certa imagem<br />

desse demônio; essa imagem oferece-se à sua alma através <strong>da</strong> ação do<br />

cérebro e dos espíritos e com tanta evidência que ele acredita ver<br />

continuamente o próprio demônio 57 .<br />

Portanto, <strong>na</strong> <strong>loucura</strong>, tal como Diemerbroek a a<strong>na</strong>lisa, há dois<br />

níveis: um, aquele que se manifesta aos olhos de todos: uma tristeza<br />

sem fun<strong>da</strong>mento num homem que se acusa erroneamente de haver<br />

assassi<strong>na</strong>do seu filho; uma imagi<strong>na</strong>ção deprava<strong>da</strong> que inventa<br />

57 DIEMERBROEK, «Disputationes practicae de morbis tapitis» in Opera omnia<br />

a<strong>na</strong>tomica et medica, Utrecht, 1685, Historia, III, pp. 4-5.<br />

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