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A história da loucura na idade clássica

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No entanto, são algo mais do que um mero perfil social, que uma<br />

silhueta de caricatura. Existe neles algo que diz respeito ao desatino<br />

do século XVIII. Suas conversas, sua inquietação, esse vago delírio e,<br />

no fundo, essa angústia, foram vividos de maneira bastante comum e<br />

em existências reais cujos rastros ain<strong>da</strong> se podem perceber. Tanto<br />

quanto o libertino, o devasso ou o violento do fim do século XVII, é<br />

difícil dizer se se trata de loucos, doentes ou trampolineiros. O<br />

próprio Mercier não sabe muito bem que estatuto atribuir-lhes:<br />

Assim, há em Paris pessoas muito honestas, economistas e antieconomistas,<br />

com o coração quente, dedicados ao bem público mas que, infelizmente, têm<br />

uma mola a menos, isto é, têm vistas curtas, não conhecem nem o século em<br />

que estão nem os homens com os quais estão li<strong>da</strong>ndo; mais insuportáveis do<br />

que os tolos porque, com dinheiro e falsas luzes, partem de um princípio<br />

impossível e, em conseqüência, desati<strong>na</strong>m 2 .<br />

Eles existiram realmente, esses "fazedores de projetos de<br />

cérebro mole" 3 , constituindo ao redor <strong>da</strong> razão dos filósofos, ao redor<br />

desses projetos de reforma, dessas constituições e desses planos, um<br />

abafado acompanhamento de desatino; a racio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

Luzes encontrava neles uma espécie de espelho distorcido, uma<br />

espécie de inofensiva caricatura. Mas o essencial não é que num<br />

movimento de indulgência se permita volte para a luz do dia uma<br />

perso<strong>na</strong>gem do desatino, exatamente no momento em que se<br />

acreditava ter profun<strong>da</strong>mente ocultado o desatino no espaço do<br />

inter<strong>na</strong>mento? Era como se a razão <strong>clássica</strong> admitisse novamente<br />

uma vizinhança, um relacio<strong>na</strong>mento, uma quase-semelhança entre<br />

ela e as figuras do desatino. Dir-se-ia que no momento de seu triunfo<br />

ela suscita e deixa à deriva, nos confins <strong>da</strong> ordem, uma perso<strong>na</strong>gem<br />

cuja máscara ela moldou como numa troça — uma espécie de duplo<br />

onde ela se reconhece e ao mesmo tempo se anula.<br />

No entanto, o medo e a angústia não estavam longe: ricochete<br />

do inter<strong>na</strong>mento, reaparecem, mas redobrados. Antigamente se<br />

temia, e ain<strong>da</strong> se teme, ser inter<strong>na</strong>do; ao fi<strong>na</strong>l do século XVIII, Sade<br />

ain<strong>da</strong> será perseguido pelo medo <strong>da</strong>queles a que ele chama "os<br />

homens negros" e que o espreitam para fazer com que desapareça 4 .<br />

Mas agora a terra do inter<strong>na</strong>mento adquiriu poderes próprios, tornou-<br />

2 Idem, pp. 235-236.<br />

3 Encontra-se freqüentemente esta menção nos livros dos inter<strong>na</strong>mentos.<br />

4 Carta a sua mulher cit. in LELY, Vie de Sade, Paris, 1952, I, p. 105.<br />

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