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A história da loucura na idade clássica

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<strong>na</strong>tureza 30 . O relacio<strong>na</strong>mento estabelecido por Rousseau é<br />

exatamente o contrário; a soberania não transpõe mais a existê ncia<br />

<strong>na</strong>tural; esta é ape<strong>na</strong>s um objeto puro e soberano, o que lhe permite<br />

tomar as medi<strong>da</strong>s de sua total liber<strong>da</strong>de. Levado ao ponto culmi<strong>na</strong>nte<br />

de sua lógica, o desejo só aparentemente conduz à redescoberta <strong>da</strong><br />

<strong>na</strong>tureza. De fato, não existe, em Sade, um retorno à terra <strong>na</strong>tal,<br />

nenhuma esperança de que a recusa inicial do social se transforme<br />

sub-repticiamente <strong>na</strong> ordem prepara<strong>da</strong> <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, através de uma<br />

dialética <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza que renuncia a si mesma e com isso se<br />

confirma. A <strong>loucura</strong> solitária do desejo que ain<strong>da</strong> para Hegel, como<br />

para os filósofos do século XVIII, mergulha fi<strong>na</strong>lmente o homem num<br />

mundo <strong>na</strong>tural logo retomado num mundo social, para Sade não faz<br />

mais do que jogá-lo num vazio que domi<strong>na</strong> de longe a <strong>na</strong>tureza,<br />

numa total ausência de proporções e de comuni<strong>da</strong>de, <strong>na</strong> inexistência,<br />

sempre recomeça<strong>da</strong>, <strong>da</strong> sacie<strong>da</strong>de. A noite <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, então, não<br />

tem limites; aquilo que se podia tomar como sendo a <strong>na</strong>tureza<br />

violenta do homem era ape<strong>na</strong>s o infinito <strong>da</strong> não-<strong>na</strong>tureza.<br />

Aqui se origi<strong>na</strong> a grande monotonia de Sade: à medi<strong>da</strong> que ele<br />

avança, os cenários desaparecem; as surpresas, os incidentes, as<br />

ligações patéticas ou dramáticas <strong>da</strong>s ce<strong>na</strong>s desaparecem. Aquilo que<br />

ain<strong>da</strong> era peripécia em Justine — evento suportado, portanto novo —<br />

em Juliette tor<strong>na</strong>-se jogo soberano, sempre triunfante, sem<br />

negativi<strong>da</strong>de, cuja perfeição é tal que sua novi<strong>da</strong>de só pode ser<br />

ape<strong>na</strong>s semelhança consigo mesmo. Como em Goya, não há mais um<br />

fundo para esses Disparatados meticulosos. No entanto, nessa<br />

ausência de cenário, que tanto pode ser noite total quanto dia<br />

absoluto (não há sombra em Sade), avança-se lentamente para um<br />

fim: a morte de Justine. Sua inocência havia fatigado até o desejo de<br />

achincalhá-la. Não se pode dizer que o crime não tivesse vencido<br />

sobre sua virtude; é preciso dizer, inversamente, que sua virtude<br />

<strong>na</strong>tural a havia levado ao ponto de ter esgotado to<strong>da</strong>s as maneiras<br />

possíveis de ser objeto para o crime. Neste ponto, e quando o crime<br />

só pode escorraçá-la do domínio de sua soberania (Juliette expulsa<br />

sua irmã do castelo de Noirceuil), é então que a <strong>na</strong>tureza, por sua<br />

30 Esta coesão imposta aos socii consiste com efeito em não admitir entre si a<br />

vali<strong>da</strong>de do direito de morte, que podem exercer sobre os outros,<br />

reconhecendo-se entre eles um direito absoluto de livre disposição: todos<br />

devem pertencer a todos.<br />

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