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A história da loucura na idade clássica

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continuando-o, tender a termi<strong>na</strong>r com ele. É preciso conduzi-lo a um<br />

estado de paroxismo e de crise no qual, sem a contribuição de<br />

nenhum elemento estranho, ele será confrontado consigo mesmo e<br />

debatido em confronto com as exigências de sua própria ver<strong>da</strong>de. O<br />

discurso real e perceptivo que prolonga a linguagem delirante <strong>da</strong>s<br />

imagens deve portanto, sem escapar às leis desta, sem sair de sua<br />

soberania, exercer, com relação a ela, uma função positiva. Ele a<br />

envolve ao redor do que tem de essencial; se ele a realiza com o<br />

risco de confirmá-la, é para dramatizá-la. Cita-se o caso de um<br />

doente que, acreditando-se morto, morria realmente por não comer;<br />

um bando de pessoas páli<strong>da</strong>s e vesti<strong>da</strong>s como mortas entra em seu<br />

quarto, põe a mesa, traz comi<strong>da</strong> e se põe a comer e beber diante <strong>da</strong><br />

cama. O morto, esfomeado, observa; manifesta-se surpresa por continuar<br />

<strong>na</strong> cama; convencem-no de que os mortos comem pelo menos tanto<br />

quanto os vivos. Ele aceita esse costume 96 .<br />

É no interior de um discurso contínuo que os elementos do<br />

delírio, entrando em contradição, dão início à crise. Crise que é, de<br />

modo muito ambíguo, ao mesmo tempo médica e teatral: to<strong>da</strong> uma<br />

tradição <strong>da</strong> medici<strong>na</strong> ocidental, desde Hipócrates, encontra aí, e<br />

ape<strong>na</strong>s por alguns anos, uma <strong>da</strong>s formas maiores <strong>da</strong> experiência<br />

teatral. Vê-se esboçar o grande tema de uma crise que seria<br />

confronto do insensato com seu próprio sentido, <strong>da</strong> razão com o<br />

desatino, <strong>da</strong> artimanha lúci<strong>da</strong> com a cegueira do alie<strong>na</strong>do, uma crise<br />

que marca o ponto em que a ilusão, volta<strong>da</strong> contra si mesma, vai se<br />

abrir para o deslumbramento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Esta abertura é iminente <strong>na</strong> crise, é ela, mesmo, com sua<br />

proximi<strong>da</strong>de imediata, que constitui o essencial dessa crise. Mas ela<br />

não é provoca<strong>da</strong> pela própria crise. Para que a crise seja médica e<br />

não ape<strong>na</strong>s dramática, -para que não seja o aniquilamento do homem<br />

mas pura e simples supressão <strong>da</strong> doença, em suma, para que essa<br />

realização dramática do delírio tenha um efeito de purificação cômica,<br />

é preciso que uma artimanha seja introduzi<strong>da</strong> num <strong>da</strong>do momento 97 .<br />

Uma artimanha ou pelo menos um elemento que altere sub-<br />

repticiamente o jogo autônomo do delírio e que, confirmando-o<br />

incessantemente, não o liga à própria ver<strong>da</strong>de sem acorrentá-lo ao<br />

mesmo tempo à necessi<strong>da</strong>de de sua supressão. O exemplo mais<br />

96 Discours sur les penchants, por M. HULSHORFF, lido <strong>na</strong> Academia de Berlim.<br />

Extratos cit. pela Gazette salutaire, 17.8.1769, n. 33.<br />

97 Hic omnivarius morbus ingenio et astutia curandus est (LUSITANUS,P. 43).<br />

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