15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

aplica sanções contra um sacerdote que se tor<strong>na</strong> insano; mas em<br />

Nuremberg, em 1421, um padre louco é expulso com uma particular<br />

soleni<strong>da</strong>de, como se a impureza se acentuasse pelo caráter sacro <strong>da</strong><br />

perso<strong>na</strong>gem, e a ci<strong>da</strong>de retira de seu orçamento o dinheiro que devia<br />

servir-lhe de viático 34 . Acontecia de alguns loucos serem chicoteados<br />

publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem<br />

a seguir perseguidos numa corri<strong>da</strong> simula<strong>da</strong> e escorraçados <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

a basto<strong>na</strong><strong>da</strong>s 35 . Outro dos signos de que a parti<strong>da</strong> dos loucos se<br />

inscrevia entre os exílios rituais.<br />

Compreende-se melhor agora a curiosa sobrecarga que afeta a<br />

<strong>na</strong>vegação dos loucos e que lhe dá sem dúvi<strong>da</strong> seu prestígio. Por um<br />

lado, não se deve reduzir a parte de uma eficácia prática<br />

incontestável: confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar<br />

que ele ficasse vagando indefini<strong>da</strong>mente entre os muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, é<br />

ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua<br />

própria parti<strong>da</strong>. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de<br />

seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela<br />

purifica. Além do mais, a <strong>na</strong>vegação entrega o homem à incerteza <strong>da</strong><br />

sorte: nela, ca<strong>da</strong> um é confiado a seu próprio destino, todo embarque<br />

é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco<br />

em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando<br />

desembarca. Esta <strong>na</strong>vegação do louco é simultaneamente a divisão<br />

rigorosa e a Passagem absoluta. Num certo sentido, ela não faz mais<br />

que desenvolver, ao longo de uma geografia semi-real, semiimaginária,<br />

a situação limi<strong>na</strong>r do louco no horizonte <strong>da</strong>s<br />

preocupações do homem medieval — situação simbólica e realiza<strong>da</strong><br />

ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado às<br />

portas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e<br />

não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar<br />

de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente.<br />

Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvi<strong>da</strong> a sua<br />

até nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza<br />

visível <strong>da</strong> ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência.<br />

A água e a <strong>na</strong>vegação têm realmente esse papel. Fechado no<br />

<strong>na</strong>vio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil<br />

braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a<br />

tudo. É um prisioneiro no meio <strong>da</strong> mais livre, <strong>da</strong> mais aberta <strong>da</strong>s<br />

34 Um homem que lhe havia roubado o casaco ê punido com sete dias de prisão.<br />

(Cf. KIRCHHOFF, loc. cit.)<br />

35 Cf. KRIEGK, loc. cit.<br />

16

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!