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A história da loucura na idade clássica

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simples desse método é o ardil empregado com doentes delirantes<br />

que imagi<strong>na</strong>m perceber em seus corpos um objeto, um animal<br />

extraordinário.<br />

Quando um doente acredita ter encerrado algum animal dentro do corpo,<br />

é preciso fazer de conta que se retira esse animal; se é <strong>na</strong> barriga, é<br />

possível produzir esse efeito através de um purgante que o sacu<strong>da</strong> um<br />

pouco acentua<strong>da</strong>mente, jogando-se o animal <strong>na</strong> bacia sem que o doente<br />

perceba 98 .<br />

A ence<strong>na</strong>ção realiza o objeto delirante mas não pode fazê-lo sem<br />

o exteriorizar, e se ela dá ao doente uma confirmação perceptiva de<br />

sua ilusão, ela o faz ape<strong>na</strong>s libertando-o pela força. A reconstituição<br />

artificiosa do delírio constitui a distância real <strong>na</strong> qual o doente recobra<br />

a liber<strong>da</strong>de.<br />

Mas às vezes não há necessi<strong>da</strong>de desse distanciamento. É no<br />

interior <strong>da</strong> quase-percepção do delírio que vem alojar-se, por um<br />

ardil, um elemento perceptivo, de início silencioso, mas cuja<br />

progressiva afirmação virá contestar todo o sistema. É nele mesmo, e<br />

<strong>na</strong> percepção que confirma seu delírio, que o doente percebe a<br />

reali<strong>da</strong>de liberadora. Trallion conta como um médico dissipou o delírio<br />

de um melancólico que imagi<strong>na</strong>va não ter mais cabeça, sentindo em<br />

seu lugar uma espécie de vazio. O médico, entrando no delírio,<br />

aceita, a pedido do doente, tocar no buraco, e coloca-lhe sobre a<br />

cabeça uma grande bola de chumbo. Rapi<strong>da</strong>mente o incômodo<br />

resultante e o peso doloroso convenceram o doente de que ele tinha<br />

cabeça 99 . Enfim, a artimanha e sua função de redução cômica pode<br />

ser assegura<strong>da</strong> com a cumplici<strong>da</strong>de do médico, mas sem outra<br />

intervenção direta de sua parte, através do jogo espontâneo do<br />

organismo do doente. No caso citado mais acima, do melancólico que<br />

morria realmente por não comer porque acreditava estar morto, a<br />

realização teatral de um festim dos mortos incita-o a comer. Esse<br />

alimento o restaura, "o uso dos alimentos tor<strong>na</strong>-o mais tranqüilo" e a<br />

perturbação orgânica desaparece, e com isso o delírio, que era<br />

indissociavelmente causa e efeito, não deixará de desaparecer 100<br />

Assim, a morte real que iria resultar <strong>da</strong> morte imaginária é afasta<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de através ape<strong>na</strong>s <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> morte irreal. A troca do<br />

não-ser consigo mesmo se faz neste jogo sábio: o não-ser do delírio<br />

98 Encyélopédie, verbete «Melancolia».<br />

99 Encyclopédie, verbete «Melancolia».<br />

100 Gazette salutaire, 17.8.1769, n. 33.<br />

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