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A história da loucura na idade clássica

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Entre to<strong>da</strong>s as outras formas de ilusão, a <strong>loucura</strong> traça um dos<br />

caminhos <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> dos mais freqüentados pelo século XVI. Nunca se<br />

tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não<br />

ser louco:<br />

Não nos lembramos de como sentimos a presença <strong>da</strong> contradição em nosso<br />

próprio juízo? 5<br />

Ora, Descartes adquiriu agora essa certeza, e agarra-se<br />

firmemente a ela: a <strong>loucura</strong> não pode mais dizer-lhe respeito. Seria<br />

extravagante acreditar que se é extravagante; como experiência do<br />

pensamento, a <strong>loucura</strong> implica a si própria e, portanto, exclui-se do<br />

projeto. Com isso, o perigo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> desapareceu no próprio<br />

exercício <strong>da</strong> Razão. Esta se vê entrincheira<strong>da</strong> <strong>na</strong> ple<strong>na</strong> posse de si<br />

mesma, onde só pode encontrar como armadilhas o erro, e como<br />

perigos, as ilusões. A dúvi<strong>da</strong> de Descartes desfaz os encantos dos<br />

sentidos, atravessa as paisagens do sonho, sempre guia<strong>da</strong> pela luz<br />

<strong>da</strong>s coisas ver<strong>da</strong>deiras; mas ele bane a <strong>loucura</strong> em nome <strong>da</strong>quele<br />

que duvi<strong>da</strong>, e que não pode desati<strong>na</strong>r mais do que não pode pensar<br />

ou ser.<br />

A problemática <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> — a de Montaigne — se vê, com isso,<br />

modifica<strong>da</strong>. De um modo quase imperceptível, sem dúvi<strong>da</strong>, mas<br />

decisivo. Ei-la agora coloca<strong>da</strong> numa região de exclusão, <strong>da</strong> qual não<br />

se libertará, a não ser parcialmente, <strong>na</strong> Fenomenologia do Espírito. A<br />

Não-Razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta<br />

cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as<br />

relações <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. O percurso <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong><br />

cartesia<strong>na</strong> parece testemunhar que no século XVII esse perigo está<br />

conjurado e que a <strong>loucura</strong> foi coloca<strong>da</strong> fora do domínio no qual o<br />

sujeito detém seus direitos à ver<strong>da</strong>de: domínio este que, para o<br />

pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a <strong>loucura</strong> está<br />

exila<strong>da</strong>. Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como<br />

exercício de soberania de um sujeito que se atribui o dever de<br />

perceber o ver<strong>da</strong>deiro, não pode ser insensato. Traça-se uma linha<br />

divisória que logo tor<strong>na</strong>rá impossível a experiência, tão familiar à<br />

Re<strong>na</strong>scença, de uma Razão irrazoável, de um razoável Desatino.<br />

Entre Montaigne e Descartes algo se passou: algo que diz respeito ao<br />

advento de uma ratio. Mas é inquietante que a <strong>história</strong> de uma ratio<br />

como a do mundo ocidental se esgote no progresso de um<br />

5 Idem, p. 236<br />

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