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A história da loucura na idade clássica

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exatamente esta silhueta de pesadelo que é simultaneamente o<br />

sujeito e o objeto <strong>da</strong> tentação; é ela que fasci<strong>na</strong> o olhar do asceta —<br />

permanecendo uma e outro prisioneiros de uma espécie de<br />

interrogação no espelho, a permanecer indefini<strong>da</strong>mente sem<br />

resposta, num silêncio habitado ape<strong>na</strong>s pelo bulício imundo que os<br />

cerca 61 . O grylle não mais lembra ao homem, sob uma forma satírica,<br />

sua vocação espiritual esqueci<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>loucura</strong> de seu desejo. É a<br />

<strong>loucura</strong> transforma<strong>da</strong> em Tentação: tudo que nele existe de<br />

impossível, de fantástico, de inumano, tudo que nele indica a<br />

contra<strong>na</strong>tureza e o formigamento de uma presença insa<strong>na</strong> ao rés-dochão,<br />

tudo isso, justamente, é que lhe atribui seu estranho poder. A<br />

liber<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que apavorante, de seus sonhos e os fantasmas de<br />

sua <strong>loucura</strong> têm, para o homem do século XV, mais poderes de<br />

atração que a reali<strong>da</strong>de desejável <strong>da</strong> carne.<br />

Qual é, portanto, esse poder de fascínio que, nessa época, se<br />

exerce através <strong>da</strong>s imagens <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>?<br />

De início, o homem descobre, nessas figuras fantásticas, como<br />

que um dos segredos e uma <strong>da</strong>s vocações de sua <strong>na</strong>tureza. No<br />

pensamento <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média, as legiões de animais, batizados<br />

definitivamente por Adão, ostentavam simbolicamente os valores <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de 62 . Mas no começo <strong>da</strong> Re<strong>na</strong>scença, as relações com a<br />

animali<strong>da</strong>de se invertem: a besta se liberta, escapa do mundo <strong>da</strong><br />

fábula e <strong>da</strong> ilustração moral a fim de adquirir um fantástico que lhe é<br />

próprio. E, por uma surpreendente inversão, é o animal, agora, que<br />

vai espreitar o homem, apoderar-se dele e revelar-lhe sua própria<br />

ver<strong>da</strong>de. Os animais impossíveis, oriundos de uma imagi<strong>na</strong>ção<br />

enlouqueci<strong>da</strong>, tor<strong>na</strong>ram-se a <strong>na</strong>tureza secreta do homem, e quando<br />

no juízo fi<strong>na</strong>l o pecador aparece em sua nudez hedion<strong>da</strong>, percebe-se<br />

que ele ostenta o rosto monstruoso de um animal delirante: são<br />

esses corujões cujos corpos de sapos misturam-se, no Inferno de<br />

Thierry Bouts, à nudez dos <strong>da</strong><strong>na</strong>dos; são, à maneira de Stefan<br />

Lochner, insetos alados, borboletas com cabeças de gado, esfinges<br />

com élitros de besouros, pássaros com asas inquietantes e ávi<strong>da</strong>s,<br />

como mãos; é o grande animal de presa de dedos nodosos que figura<br />

<strong>na</strong> Tentação de Grünewald. A animali<strong>da</strong>de escapou à domesticação<br />

pelos valores e pelos símbolos humanos; e se ela agora fasci<strong>na</strong> o<br />

61 É possível que Bosch tenha feito seu auto-retrato no rosto <strong>da</strong> «cabeça com<br />

per<strong>na</strong>s» que figura no centro <strong>da</strong> Tentação de Lisboa. Cf. BRION, Jérôme<br />

Bosch, p. 40.<br />

62 Na metade do século XV, o Livre des Tournois de RENÉ D'ANJOU constitui ain<strong>da</strong><br />

um bestiárjo moral.<br />

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