15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

entanto, rigorosamente, obrigatório: não ao nível <strong>da</strong>s sínteses<br />

<strong>na</strong>turais, mas ao nível <strong>da</strong>s sínteses morais. O pobre que, sem<br />

consentir em "atormentar" a terra, esperasse que Deus viesse em<br />

sua aju<strong>da</strong>, pois este prometeu alimentar os pássaros do céu, estaria<br />

desobedecendo à grande lei <strong>da</strong>s Escrituras: "Não tentarás o Eterno,<br />

teu Senhor". Não querer trabalhar, não é "pôr à prova o poder de<br />

Deus"? 99 É procurar obrigá-lo a fazer o milagre 100 , isto quando o<br />

milagre é outorgado diariamente ao homem como recompensa<br />

gratuita de seu trabalho. Se é ver<strong>da</strong>de que o trabalho não está<br />

inscrito entre as leis <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza, ele está envolvido <strong>na</strong> ordem do<br />

mundo decaído. É por isso que a ociosi<strong>da</strong>de é revolta — a pior de<br />

to<strong>da</strong>s, num certo sentido, pois ela espera que a <strong>na</strong>tureza seja<br />

generosa como <strong>na</strong> inocência dos primórdios e quer obrigar uma<br />

Bon<strong>da</strong>de à qual o homem não tem mais direito depois de Adão. O<br />

orgulho foi o pecado do homem antes <strong>da</strong> que<strong>da</strong>; mas o pecado <strong>da</strong><br />

ociosi<strong>da</strong>de é o supremo orgulho do homem caído, o inútil orgulho <strong>da</strong><br />

miséria. Em nosso mundo, no qual a terra só é fértil em espinheiros e<br />

ervas <strong>da</strong>ninhas, esse é o pecado por excelência. Na I<strong>da</strong>de Média, o<br />

grande pecado, radix malorum omnium, foi a soberba. A acreditar-se<br />

em Huizinga, houve um tempo, <strong>na</strong> aurora <strong>da</strong> Re<strong>na</strong>scença, em que o<br />

pecado supremo assumiu a forma <strong>da</strong> Avareza, a cicca cupidigia de<br />

Dante 101 . Todos os textos do século XVII anunciam, pelo contrário, o<br />

infer<strong>na</strong>l triunfo <strong>da</strong> Preguiça: é ela agora que conduz a ron<strong>da</strong> dos<br />

vícios e os provoca. Não nos esqueçamos de que, segundo o édito de<br />

criação, o Hospital Geral deve impedir "a mendicância e a ociosi<strong>da</strong>de<br />

como fontes de to<strong>da</strong>s as desordens". Bour<strong>da</strong>loue faz eco a essas<br />

conde<strong>na</strong>ções <strong>da</strong> preguiça, miserável orgulho do homem caído:<br />

O que significa portanto, ain<strong>da</strong> uma vez, essa desordem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ociosa?<br />

Entendendo bem a Santo Ambrósio, é uma segun<strong>da</strong> revolta <strong>da</strong> criatura contra<br />

Deus 102 .<br />

O trabalho <strong>na</strong>s casas de inter<strong>na</strong>mento assume assim uma<br />

significação ética: <strong>da</strong>do que a preguiça tornou-se a forma absoluta <strong>da</strong><br />

revolta, obrigam-se os ociosos ao trabalho, no lazer indefinido de um<br />

labor sem utili<strong>da</strong>de nem proveito.<br />

99 CALVINO, Sermon 49 sur le Deulíronome, 3 de julho de 1555.<br />

100 «Queremos que Deus sirva a nossos loucos apetites e que ele fique como que<br />

sujeito a nós» (CALVINO, ibid.).<br />

101 HUIZINGA, Le Díclin du Moyen Age, Paris 1932, p. 35.<br />

102 BOURDALOUE, Dimanche de la Septuagésime, Oeuvres, Paris, 1900, I, p. 346.<br />

82

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!