15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

enquanto os fios são segurados de um modo ain<strong>da</strong> mais firme —, é o<br />

próprio tipo do trompe-l'oeil 112 barroco. A <strong>loucura</strong> é o grande trompe-<br />

l'oeil <strong>na</strong>s estruturas tragicômicas <strong>da</strong> literatura pré-<strong>clássica</strong> 113 .<br />

E Scudéry sabia muito bem disso quando, querendo fazer em<br />

sua Comédie des comédiens o teatro do teatro, situou de uma vez<br />

sua peça no jogo <strong>da</strong>s ilusões <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Uma parte dos comediantes<br />

deve representar o papel de espectadores, e os demais, o papel dos<br />

atores. É necessário portanto, de um lado, fingir que se toma o<br />

cenário pela reali<strong>da</strong>de, a representação pela vi<strong>da</strong>, enquanto <strong>na</strong><br />

ver<strong>da</strong>de se está representando num cenário real; e, de outro lado,<br />

fingir representar e mimar o ator quando se é, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de,<br />

simplesmente, um ator que representa. Duplo jogo no qual ca<strong>da</strong><br />

elemento é ele mesmo desdobrado, constituindo assim esta troca<br />

renova<strong>da</strong> entre o real e a ilusão que é, ela mesma, o sentido<br />

dramático <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>.<br />

Não sei [deve dizer Mondory no prólogo <strong>da</strong> peça de Scudéry] que<br />

extravagância é essa, hoje, de meus companheiros, mas ela é tão grande que<br />

sou levado a crer que um encanto qualquer lhes rouba a razão, e o pior é que<br />

eles estão tentando fazer com que eu a perca e vocês também. Querem me<br />

convencer de que não estou num teatro, de que esta é a ci<strong>da</strong>de de Lyon, de<br />

que ali existe uma hospe<strong>da</strong>ria e aqui um jeu de paume, onde Comediantes<br />

que não somos nós, e que no entanto somos nós, representam uma<br />

Pastoral. 114<br />

Nessa extravagância, o teatro desenvolve sua ver<strong>da</strong>de, que é a<br />

de ser ilusão. Coisa que a <strong>loucura</strong> é, em sentido estrito.<br />

A experiência <strong>clássica</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> <strong>na</strong>sce. A grande ameaça<br />

surgi<strong>da</strong> no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes<br />

que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas<br />

formas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um<br />

cortejo, o inevitável cortejo <strong>da</strong> razão. A <strong>loucura</strong> deixou de ser, nos<br />

confins do mundo, do homem e <strong>da</strong> morte, uma figura escatológica; a<br />

noite <strong>na</strong> qual ela tinha os olhos fixos e <strong>da</strong> qual <strong>na</strong>sciam as formas do<br />

112 Ilusão óptica (N. do T.).<br />

113 Seria necessário realizar um estudo estrutural <strong>da</strong>s relações entre o sonho e a<br />

<strong>loucura</strong> no teatro do século XVII. O parentesco entre eles era há muito tempo<br />

um tema filosófico e médico (cf. Parte II, Cap. 8); o sonho, no entanto,<br />

parece um pouco mais tardio, como elemento essencial <strong>da</strong> estrutura<br />

dramática. Em todo caso, seu sentido é outro, uma vez que a reali<strong>da</strong>de que o<br />

habita não é a <strong>da</strong> reconciliação, mas sim a do desfecho trágico. Seu trompel'oeil<br />

desenha a perspectiva ver<strong>da</strong>deira do drama, e não induz em erro como a<br />

<strong>loucura</strong> que, mi ironia de sua aparente desordem, indica uma falsa conclusão.<br />

114 G. DE SCUDÉRY, La comédie des comédiens, Paris, 1635.<br />

48

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!