15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

mundo onde, sob essas sombras, ron<strong>da</strong> a liber<strong>da</strong>de.<br />

Os próprios médicos experimentaram essa liber<strong>da</strong>de quando,<br />

comunicando-se pela primeira vez com o insensato no mundo misto<br />

<strong>da</strong>s imagens corporais e dos mitos orgânicos, descobriram,<br />

comprometi<strong>da</strong> em tantos mecanismos, a sur<strong>da</strong> presença <strong>da</strong> falta:<br />

paixão, desregramento, ociosi<strong>da</strong>de, vi<strong>da</strong> aprazível <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des,<br />

leituras ávi<strong>da</strong>s, cumplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção, sensibili<strong>da</strong>de ao mesmo<br />

tempo demasiado ansiosa de excitações e demasiado inquieta<br />

consigo mesma, outros tantos jogos perigosos <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, onde a<br />

razão se arrisca <strong>na</strong> <strong>loucura</strong>, como por vontade própria.<br />

Liber<strong>da</strong>de obsti<strong>na</strong><strong>da</strong> e precária, simultaneamente. Ela permanece<br />

sempre no horizonte <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, mas quando se quer delimitá-la,<br />

desaparece. Só está presente e só é possível <strong>na</strong> forma de uma<br />

abolição iminente. Entrevista <strong>na</strong>s regiões extremas onde a <strong>loucura</strong><br />

poderia falar de si mesma, não mais aparece a seguir, a partir do<br />

momento em que o olhar pousa sobre ela, a não ser comprometi<strong>da</strong>,<br />

coagi<strong>da</strong> e reduzi<strong>da</strong>. A liber<strong>da</strong>de do louco só existe nesse instante e<br />

nessa imperceptível distância que o tor<strong>na</strong>m livre para abando<strong>na</strong>r sua<br />

liber<strong>da</strong>de e acorrentar-se à sua <strong>loucura</strong>; ela está ape<strong>na</strong>s nesse ponto<br />

virtual <strong>da</strong> escolha, em que nos decidimos "a nos colocarmos <strong>na</strong><br />

incapaci<strong>da</strong>de de usar de nossa liber<strong>da</strong>de e corrigir nossos erros" 2 . Em<br />

segui<strong>da</strong>, ela não passa de mecanismo do corpo, encarceramento dos<br />

fantasmas, necessi<strong>da</strong>des do delírio. E São Vicente de Paula, que<br />

supunha existente essa liber<strong>da</strong>de no próprio gesto do inter<strong>na</strong>mento,<br />

não deixava no entanto de observar a diferença entre os libertinos<br />

responsáveis, "filhos <strong>da</strong> dor... opróbio e ruí<strong>na</strong> de suas casas" e os<br />

loucos "enormemente dignos de compaixão ... não sendo senhores de<br />

suas vontades e não tendo nem juízo, nem liber<strong>da</strong>de" 3 . A liber<strong>da</strong>de a<br />

partir <strong>da</strong> qual a <strong>loucura</strong> <strong>clássica</strong> é possível sufoca nessa <strong>loucura</strong> e<br />

mergulha <strong>na</strong>quilo que manifesta de modo mais cruel sua contradição.<br />

É preciso que seja bem esse o paradoxo dessa liber<strong>da</strong>de<br />

constitutiva: aquilo pelo que o louco tor<strong>na</strong>-se louco, isto é, também<br />

aquilo pelo que, a <strong>loucura</strong> não sendo ain<strong>da</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong>, ele pode se<br />

comunicar com a não-<strong>loucura</strong>. Desde o começo, ele escapa a si<br />

mesmo e à sua ver<strong>da</strong>de de louco, reunindo-se numa região que não é<br />

2 Idem, ibid., p. 4.<br />

3 ABELLY. Vie de saint Vincent de Paul, Paris, 1813, II, cap. XIII.<br />

557

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!