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A história da loucura na idade clássica

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profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, um vazio que não mais será preenchido. De um<br />

lado, haverá uma Nau dos Loucos cheia de rostos furiosos que aos<br />

poucos mergulha <strong>na</strong> noite do mundo, entre paisagens que falam <strong>da</strong><br />

estranha alquimia dos saberes, <strong>da</strong>s sur<strong>da</strong>s ameaças <strong>da</strong> bestiali<strong>da</strong>de e<br />

do fim dos tempos. Do outro lado, haverá uma Nau dos Loucos que<br />

constitui, para os prudentes, a Odisséia exemplar e didática dos<br />

defeitos humanos.<br />

De um lado, Bosch, Brueghel, Thierry Bouts, Dürer e todo o<br />

silêncio <strong>da</strong>s imagens. É no espaço <strong>da</strong> pura visão que a <strong>loucura</strong><br />

desenvolve seus poderes. Fantasmas e ameaças, puras aparências do<br />

sonho e destino secreto do homem — a <strong>loucura</strong> tem, nesses<br />

elementos, uma força primitiva de revelação: revelação de que o<br />

onírico é real, de que a delga<strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> ilusão se abre sobre<br />

uma profundeza irrecusável, e que o brilho instantâneo <strong>da</strong> imagem<br />

deixa o mundo às voltas com figuras inquietantes que se eternizam<br />

em suas noites; e revelação inversa, mas igualmente dolorosa, de<br />

que to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de do mundo será reabsorvi<strong>da</strong> um dia <strong>na</strong> Imagem<br />

fantástica, nesse momento mediano do ser e do <strong>na</strong><strong>da</strong> que é o delírio<br />

<strong>da</strong> destruição pura; o mundo não existe mais, porém sobre ele o<br />

silêncio e a noite ain<strong>da</strong> não se abateram inteiramente; ele vacila num<br />

último clarão, no ponto extremo <strong>da</strong> desordem que precede<br />

imediatamente a ordem monóto<strong>na</strong> <strong>da</strong> realização. É nesta imagem<br />

logo aboli<strong>da</strong> que se vem perder a ver<strong>da</strong>de do mundo. To<strong>da</strong> esta<br />

trama do visível e do secreto, <strong>da</strong> imagem imediata e do enigma<br />

reservado desenvolve-se, <strong>na</strong> pintura do século XV, como sendo a<br />

trágica <strong>loucura</strong> do mundo.<br />

De outro lado, com Brant, Erasmo e to<strong>da</strong> a tradição humanista, a<br />

<strong>loucura</strong> é considera<strong>da</strong> no universo do discurso. Aí ela se apura, tor<strong>na</strong>-<br />

se mais sutil e também se desarma. Mu<strong>da</strong> de escala; ela <strong>na</strong>sce no<br />

coração dos homens, organiza e desorganiza sua conduta; embora<br />

governe as ci<strong>da</strong>des, a ver<strong>da</strong>de calma <strong>da</strong>s coisas, a grande <strong>na</strong>tureza a<br />

ignora. Logo desaparece, quando aparece o essencial que é vi<strong>da</strong> e<br />

morte, justiça e ver<strong>da</strong>de. Pode ser que todos os homens estejam<br />

submetidos a ela, mas seu império será sempre mesquinho e relativo,<br />

pois ela se revela em sua medíocre ver<strong>da</strong>de aos olhos do sábio. Para<br />

este, ela se tor<strong>na</strong> objeto, e do pior modo, pois se tor<strong>na</strong> objeto de seu<br />

riso. Por essa razão, os louros que se tecem sobre sua .cabeça a<br />

aprisio<strong>na</strong>m. Mesmo que seja mais sábia que to<strong>da</strong> ciência, terá de<br />

incli<strong>na</strong>r-se diante <strong>da</strong> sabedoria para quem ela é <strong>loucura</strong>. Ela pode ter<br />

a última palavra, mas não é nunca a última palavra <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e do<br />

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