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A história da loucura na idade clássica

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está ain<strong>da</strong> no mundo de Brant ou de Erasmo, um mundo onde a<br />

<strong>loucura</strong> conduz to<strong>da</strong> uma ron<strong>da</strong> dos defeitos, a <strong>da</strong>nça insa<strong>na</strong> <strong>da</strong>s<br />

vi<strong>da</strong>s imorais.<br />

No entanto, a experiência que se tem é diferente. Em 1704, é<br />

inter<strong>na</strong>do em Saint-Lazare um certo abade Bargedé; tem setenta<br />

anos e foi preso para que seja "tratado como os outros insanos":<br />

Sua principal ocupação era emprestar dinheiro a juros altos, enriquecendose<br />

com as usuras mais odiosas e mais ultrajantes para a honra do<br />

sacerdócio e <strong>da</strong> Igreja. Não foi possível convencê-lo a arrepender-se de<br />

seus excessos nem a acreditar que a usura era um pecado. Insiste em ser<br />

um avarento. 1<br />

Foi totalmente impossível "descobrir nele algum sentimento de<br />

cari<strong>da</strong>de". Bargedé é um insano, mas não como são insa<strong>na</strong>s as<br />

perso<strong>na</strong>gens embarca<strong>da</strong>s <strong>na</strong> Nau dos Loucos, que o são <strong>na</strong> medi<strong>da</strong><br />

em que foram arrasta<strong>da</strong>s pela força viva <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Bargedé é<br />

insano, não porque perdeu o uso <strong>da</strong> razão mas porque ele,<br />

homem <strong>da</strong> Igreja, pratica a usura, não <strong>da</strong>ndo mostras de nenhuma<br />

cari<strong>da</strong>de e não sentindo remorsos; porque caiu à margem <strong>da</strong> ordem<br />

moral que lhe é própria. Nesse julgamento o que transparece não é<br />

a impotência de baixar um decreto de doença, tampouco uma<br />

tendência para conde<strong>na</strong>r moralmente a <strong>loucura</strong>, mas sim o fato,<br />

essencial sem dúvi<strong>da</strong> para compreender-se a era <strong>clássica</strong>, de que a<br />

<strong>loucura</strong> tor<strong>na</strong>-se perceptível, para ela, <strong>na</strong> forma <strong>da</strong> ética.<br />

Num ponto extremo, o racio<strong>na</strong>lismo poderia paradoxalmente<br />

conceber uma <strong>loucura</strong> onde a razão não seria perturba<strong>da</strong>, mas que<br />

seria reconheci<strong>da</strong> pelo fato de to<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moral ser falsifica<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />

vontade ser má. É <strong>na</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade, e não <strong>na</strong> integri<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

razão, que reside fi<strong>na</strong>lmente o segredo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Um século antes<br />

do caso de Sade levantar perguntas <strong>na</strong> consciência médica de Royer-<br />

Collard 2 , é curioso observar que o tenente d'Argenson também se<br />

interroga sobre um caso algo análogo — exceção feita à geniali<strong>da</strong>de:<br />

Uma mulher de dezesseis anos cujo marido se chama Beaudoin... declara<br />

em alto e bom som que nunca amará seu marido, que lei nenhuma pode<br />

ordená-la a tanto, que todos são livres de dispor de seu coração e de seu<br />

corpo como melhor lhes aprouver, mas que é uma espécie de crime <strong>da</strong>r um<br />

sem <strong>da</strong>r o outro.<br />

1 B.N. Fonds Clairambault, 986.<br />

2 CL carta a Fouché, cin<strong>da</strong> atrás, Cap. 3, p. 109.<br />

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